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Crítica | Emilia Pérez e o tribunal de exceção.

Foto do escritor: Caetano GrippoCaetano Grippo

Em um cenário cultural onde a crítica muitas vezes precede a experiência, Emília Perez emerge como um estudo de caso interessante. O filme, dirigido por um cineasta disposto a confrontar convenções, tornou-se alvo de um linchamento coletivo antes mesmo de sua estreia — um fenômeno que expõe não apenas as fissuras do nosso diálogo cultural, mas também a resistência a narrativas que escapam às fórmulas pré-estabelecidas.


A trama acompanha a jornada de um traficante em processo de transição de gênero, cujo passado violento colide com seu desejo de redenção. Longe de ser uma ode simplista à transformação pessoal, o filme mergulha na ambiguidade moral, explorando como a identidade e a culpa coexistem em um personagem que não busca — e talvez não mereça — perdão. Essa abordagem, porém, foi reduzida a fragmentos: cenas isoladas, diálogos descontextualizados e críticas à representação transgênero viralizaram, transformando a obra em um caso a ser julgado, não em uma experiência a ser vivida.



O que torna Emília Perez tão incômodo? Primeiro, sua recusa em seguir o manual da "narrativa redentora". Enquanto a cultura atual exige que personagens sem representatividade sejam exemplares — heróis imaculados ou vítimas nobres —, a protagonista herege do filme é ambas as coisas e nenhuma delas. Ela comete atrocidades, manipula aqueles que ama e, mesmo em sua transição, carrega uma arrogância que a impede de se redimir. Essa complexidade, longe de ser uma falha, faz parte da proposta da obra. O filme não oferece respostas fáceis, mas questiona: uma pessoa pode renascer sem apagar o que foi? E se colocarmos os eventos atuais na equação, podemos acrescentar: a arte deve servir a lições morais ou refletir a contradição humana?


A recepção ao filme também revela nossa crise de imaginário. Em uma era obcecada por realismo e precisão, Emília Perez opta por uma estética deliberadamente artificial. Suas sequências musicais, carregadas de melodrama e cores saturadas, não buscam seduzir o espectador, mas provocá-lo. A música sobre a vaginoplastia, por exemplo, tornou-se um ponto de controvérsia. O filme, porém, não deixa claro a sua proposta. Ele confia na capacidade do público de navegar entre o grotesco e o sublime, entre o riso e o desconforto — uma aposta arriscada em tempos de espectadores que exigem "instruções de uso" para cada obra.




Essa ousadia estética ecoa a tradição da tragédia grega. Como Édipo ou Medeia, a protagonista está presa em seu métron — um limite que na antiguidade era imposto pelos deuses, mas agora, pela própria ideia da limitação da vida. Sua busca por uma nova identidade não apaga os crimes passados, e a "santificação" final, em uma cena ironicamente kitsch, é menos uma redenção que uma armadilha. Emilia é ovacionada por uma multidão que não sabe do seu passado, que cantando por justiça que desejam, diante da imagem da própria causador daquele horror: a própria Emilia. Não há vitória, apenas o retrado de contradições.


O linchamento a Emília Perez, portanto, não é sobre o filme em si, mas sobre nossa incapacidade de lidar com narrativas que não se encaixam em pré-conceitos. Ao reduzir a obra a um "debate sobre representatividade", ignoramos suas camadas, pois o filme não se propõem a ser um manifesto, mas sim um espelho trágico. E como todo espelho, reflete não apenas o que somos, mas o que tememos enxergar.


Arte não é um tribunal. Emília Perez não pede absolvição, nem merece ser apedrejado. Ele pede, isso sim, que o espectador olhe além dos fragmentos, das certezas rápidas e das hashtags. Que se permita sentir raiva, confusão ou fascínio — mas sempre após assistir, após refletir, após mergulhar na complexidade que só a experiência direta oferece. Em um mundo onde a pressa em julgar suplanta a vontade de entender, talvez essa seja a revolução mais urgente: substituir pedras por perguntas.


 

Caetano Grippo (@caetano.grippo) é cineasta, escritor, artista plástico e coordenador do Espaço Rasgo. Formado pela Academia Internacional de Cinema e pela Belas Artes, acumula quase duas décadas de experiência como artista multidisciplinar.


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