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Crítica: Não! Não olhe!

Atualizado: 7 de set. de 2023



PARTE 1 de 2: Sem Spoilers


Não, eu não gosto dos filmes do Jordan Peele. E já peço desculpa por esta afirmação grosseira. Mas preciso começar desta forma para tentar traduzir o que eu senti assistindo Não! Não Olhe! (Nope). E para isso eu faço uma comparação direta entre a experiência que foi assistir Corra! (Get Out), o primeiro filme do diretor e o seu novo projeto.

Eu sei que Corra! encanta muita gente. Postei recentemente no meu instagram que não gostava dos filmes de Jordan Peele e muita gente questionou a minha opinião. Quase sempre as pessoas argumentavam sobre a importância que ele tem como diretor negro e as representações que construídas sobre o seu universo cultural. Afinal, fazer cinema é sobre cultura. De alguma forma, a cultura do artista sempre é a coluna vertebral da sua obra.



Não descarto a importância de Jordan Peele e suas produções no cenário cultural: o racismo sempre como tema central e a sua postura como produtor são de extrema importância. O fato de sempre ter como parceiros de criação pessoas negras em todos os departamentos, potencializa sua importância em Hoollywood. O que estou dizendo é que a crítica a sua obra não me faz colocar essa discussão em foco. Quero discutir algo mais sobre a forma de seus filmes.


A falha do filme Corra! é justamente a sua construção dramatúrgica, em como o filme desenrola sua história. O enredo em si não é o problema, mas em como ele é apresentado. Os personagens são todos maniqueístas, sem profundidades psicológicas, sem nenhuma complexidade entre suas releções e sempre são representandos de forma esteriotipada.

Cena do filme Corra! (Get Out) de 2017

O filme é divertido? Sim. Obviamente. A trama acontece, os mistérios prendem a nossa atenção e o ponto de virada na narrativa cria um impacto. Mas quando um filme apresenta personagens que não são nada mais do que clichês de uma ideia, ou que não possuam nuaces no seu carater, contradições, o filme se compromete somente com sua mensagem, com a sua crítica social e, neste caso, eu não vejo nada além da crítica social.


Você pode estar me perguntando: “mas isso não basta para um filme?”.


Depende do seu ponto de vista. Existem filmes que possuem exatamente essa proposta: ilustrar uma questão social, apontar culpado e pronto. Eu particularmente não vejo nesse tipo de filme nada além de uma cartilha, um esclarecimento sobre determinada problemática. Isso é bom? Arte se limita a nossa opinião? Ou somente a nossa visão política? Entenda uma coisa: eu não tenho respostas para essas perguntas e duvido de quem as tenha. Por isso deixo este questionamento como um reflexão, pois é justamente nesta questão, ou melhor, na inversão dessa questão, que o novo filme de Jordan Peele se sustenta.


Não! Não olhe! é o terceiro filme de Jordan Peele e a sua maturidade como criador é visível. Começando pelos próprios personagens que desde o início são apresentados com cargas emocionais substanciais, claras e bem desenhadas durante as ações que precisam enfrentar. Já no primeiro ato tudo está explorado de uma forma poética e consistente, com contrastes, contradições entre as relações. Eu gosto daqueles personagens, mesmo com suas antipatias. Eles são imperfeitos, como eu. Como você.


Quando o problema central do filme começa a surgir - o desaparecimento de cavalos e vultos que aparem no céu do celeiro onde os personagens vivem - eu já estou completamente conectado com a relação entre os dois irmãos. representados magistralmente por Daniel Kaluuya e Keke Palmer.


Quando os filmes constroem um sentimento ou quando esse filme leva o espectador a uma experiência sensorial que supera o discurso, esse filme está - para mim - à frente de qualquer outra experiência cinematográfica. Se o filme tem a capacidade de nos fazer sair do cinema com os sentimentos aflorados, para só depois pensarmos sobre o que vimos, existe muito mais chance da suas imagens permearem em nosso inconsciente, e deixar alguma marca. Se o filme é só ideias, frases, palavras… eu duvido um pouco da força que ele possui em persistir na nossa memória. E é sobre esses sentimentos e essa memória que escrevo a segunda parte.


PARTE 2 de 2: Com Spoilers

Essa belíssima construção dos personagens é somente a base para que o resto do filme atinja o seu máximo. Diferente dos outros filmes, Não! Não olhe! acredita na capacidade do espectador. Mesmo explicando o que está por trás de todo o mistério, dando materialidade para o alienígena que habita os céus e caça pessoas, a experiência desse filme é muito mais impactante pois a sua maior força está no poder da sua alegoria.


Jordan Peele dirigiu três filmes sobre racismo. Os dois primeiros muito mais claros na sua temática, diretos, praticamente verbalizando o tema abordado. Enquanto neste novo, ele se ausenta da construção de antagonismos tão claros para o espectador. Muita gente pode assistir e ter a leitura que eu tenho, pois não existe mistério sobre o que ele mostra na tela. Mas ao mesmo tempo não é tão direto assim quanto parece. A gente precisa treinar um pouco o olhar para ler o filme da forma exemplificada neste texto.


O fato da ameaça maior ser um ser de outro planeta, sem identificação direta com as causas do racismo da nossa realidade, dificulta a criação de uma lógica tão imediata com o tema 'racismo'. O diretor se afasta desse discurso direto, constrói personagens que possuem contradições na relação entre eles, e somente entre eles. São dois irmãos que não encontram mais união devido os diferentes caminhos que tomaram na vida. E com isso, o filme se sustenta nessa necessidade de reencontro. De voltarem a serem irmãos.


O racismo é o que os afasta. O racismo é a força maior que esmaga a realidade dos dois e cria distanciamentos. Mas o racismo aqui não é somente uma fala. O racismo aqui não é um acontecimento. Não é uma situação específica que ilustra o descaso e a violência contra os negros. O racismo é um sentimento. Ele está presente. Um sentimento que compartilhamos com aqueles personagens e que se materializa naquele ser de outro mundo. O racismo é um animal que se esconde, que é sorrateiro e que não pode ser visto diretamente nos olhos pois, quando é encarado, se sente ameaçado.



A violência que sentimos junto com aqueles personagens é a alegoria sobre o sentimento de ser negro na nossa sociedade. Não é o sentimento em si, que fique muito claro. Pois o cinema ainda não tem essa capacidade de recriar a realidade como ela é. Pois no fim da sessão nós sabemos que voltaremos seguros para nossas casas. Diferente de quem carrega o racismo diariamente. Mas o filme tenta trazer à tona um pouco dessa experiência. E consegue.


Destaco aqui uma das momentos finais, quando o alienígena está em sua plena forma, todo aberto e pronto para o ataque. Você reparou em como ele se parece com o capuz da Ku Klux Klan? E você reparou o som das chibatadas que ele reproduz quando tenta ameaçar as suas vítimas? O nome disso é cinema. Na sua mais poderosa forma de recriar o mundo através dos mitos modernos e ressignificar o imaginário de uma sociedade. Não, Não olhe! deveria entrar para o hall dos filmes mais importantes da nossa década.


***


Queria abrir um parênteses aqui para destacar a força que o diretor trouxe para o personagem de Daniel Kaluuya: Um homem tímido, silencioso, vivendo o luto de seu pai da forma mais dura que um homem pode enfrentar. Ele finge que nada está acontecendo, como se não tivesse o direito de chorar pela morte do seu pai e precisa seguir trabalhando. Essa figura é muito mais complexa, muito mais profunda do que o seu personagem que o rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadvante no filme Judas e o Messias Negro, onde ele vive um revolucionário com características muito distintas. OJ Haywood, nome do seu personagem em Não! Não olhe! possui muito mais força e determinação do que o líder de uma revolução que esbanja sua força e virilidade..


Daniel Kaluuya é foda. Keke Palmer é foda.

A progressão dramática desses dois irmãos é foda.

Permita-me o linguajar.


***

DO AUTOR: Caetano Grippo é cineasta, artista plástico e professor. No Espaço Rasgo, além de coordenador é idealizador e professor dos cursos de narrativas, fotografia e direção.






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