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Entre sonhos e despedidas: A Poética do Inacabado em "Nada Aparentemente Termina Inquieto"


Livro lançado pela Editora Patuá
Livro lançado pela Editora Patuá

Caetano Grippo, em seu primeiro livro, Nada Aparentemente Termina Inquieto, entrega uma coletânea de contos que operam como espelhos quebrados: cada fragmento reflete uma faceta da existência humana, distorcida pela angústia, pela memória e pelo inconsciente. Mas, ao mesmo tempo, são orquestrados com uma clareza rara em histórias que exploram o inconsciente humano. Os sete contos que compõem a obra são exercícios de desnudamento psíquico, onde personagens solitários confrontam fantasmas internos e externos, em narrativas que borram as fronteiras entre realidade e delírio. Caetano não oferece respostas, mas sim labirintos — e é nessa ambiguidade que reside sua força literária. Principalmente quando encontramos o caminho que as histórias nos conduzem e são esses caminhos que quero explorar no texto a seguir.


A epígrafe de Simone Weil — “A existência humana é tão frágil e tão vulnerável que não sou capaz de amar sem estremecer” — é a chave para decifrar o universo do livro. A fragilidade não é apenas tema, mas método. Em “O Sonho de Teresa”, a protagonista, nua e cega, é transportada em uma carroça por um terreno pedregoso, enquanto fragmentos de diálogos e memórias revelam um relacionamento conturbado com o pai. A jornada física de Teresa é uma metáfora da busca por reconciliação, onde a escuridão simboliza tanto a ignorância quanto a possibilidade de redenção. A cena final, em que pai e filha trocam um “eu também te odeio” carregado de dor e amor, sintetiza a dualidade que permeia o livro: o afeto e a violência como faces da mesma moeda.


Em “Carpe Diem", o autor constrói uma alegoria kafkiana sobre a sociedade contemporânea. Um jovem se vê aprisionado em uma festa sem fim, rodeado por versões idênticas de si mesmo. A narrativa, que oscila entre o absurdo e o existencialismo, retrata a angústia de uma existência reduzida a repetições vazias: a mesma música ecoa infinitamente, os corpos dançam em sincronia mecânica e até os diálogos são espelhados, como se a individualidade tivesse sido engolida por um ritual coletivo de autoanulação. A festa, inicialmente um espaço de euforia, transforma-se em uma alegoria do conformismo social, onde a busca por pertencimento se confunde com a perda da própria identidade. A tensão culmina na hesitação do protagonista diante de um muro — símbolo do limite entre a segurança do conhecido e o abismo da liberdade. A escolha final, porém, não é sobre resistência, mas sobre rendição: ele opta por sorrir, dissolvendo-se na massa de "eus" indistintos. Grippo não julga essa decisão; expõe, com crueza, o preço da sanidade em um mundo que exige a negação do desejo de singularidade. O conto é um espelho embaçado para nossa era de likes e algoritmos, onde a autenticidade é um risco — e a sobrevivência, muitas vezes, depende de abraçar a própria ausência.



Os contos mais potentes do livro são aqueles que mergulham no trauma. “Cão da Estrada”, originalmente uma ideia para um filme, ganha nova vida na página. Dois irmãos em uma viagem confrontam um segredo de infância ligado à morte violenta de um cachorro. A animalidade dilacerada do cão atropelado — “lambendo suas vísceras" — é uma metáfora crua para a violência e a incapacidade de verbalizar a dor. A prosa seca e cortante evita sentimentalismos, optando por uma aspereza que corta como faca.


Em "Puer Aeternus", Caetano Grippo mergulha nas entranhas do arquétipo do "menino eterno" para esculpir uma alegoria visceral sobre a incapacidade de crescer. Felipe, um executivo bem-sucedido, assiste ao próprio corpo desintegrar-se — dedos, mãos, pernas — como se fosse feito de areia molhada escorrendo entre os vãos do tempo. A ausência da mãe, figura onipresente em suas ligações frustradas e na casa vazia que ele escala como um fantasma, não é apenas um pano de fundo, mas a raiz da decomposição. Cada parte perdida ecoa um trauma infantil: a cena em que cai do muro, batendo a cabeça no chão, não é acidente, mas ritual de regressão. O impacto revive a memória de um pai autoritário, cujas chibatadas ainda sibilam em seu inconsciente, e a figura da avó morta, cujo caderno de histórias abandonado simboliza a criatividade assassinada pela crítica. Grippo não escreve sobre medo da morte, mas do desaparecimento em vida — a liquefação de um homem que, sem o cordão umbilical simbólico da mãe, perde até a forma. A genialidade do conto está na inversão: enquanto Teresa (em "O Sonho de Teresa") encontra redenção ao encarar o pai, Felipe definha na recusa de sepultar a infância. Seu corpo fantasma é a metáfora máxima da obra: uma existência que se esvai por negar-se a morrer para renascer. Afinal, como escreve o autor nas notas, "precisamos das mãos para contar histórias" — e Felipe, ao perder as suas, torna-se a própria narrativa inacabada que assombra o livro.


Grippo não teme a incompletude. Seus contos frequentemente terminam em suspensão, como em “Nada Aparentemente Termina Inquieto”. Nele, a galerista Natália é assombrada por uma fotografia que não apenas a observa, mas a substitui. A imagem, surgida como um tumor na parede imaculada de sua casa, não é um simples retrato, mas um duplo perverso — um doppelgänger que encarna tudo o que ela enterrou no porão da memória: rancor, desejo e a culpa de ter destruído um amor passado. A moldura, longe de ser um limite, torna-se um portal onde passado e presente se fundem, e a protagonista, ao quebrar o vidro num ato de fúria, descobre que é ela a refém da própria armadilha. Grippo joga com a noção de que a vingança é um ritual circular: ao tentar aprisionar o outro em uma narrativa de dor (simbolizada pela fotografia que expõe suas fraquezas), Natália é quem se petrifica, transformando-se em arte — estática, contemplativa, eternamente condenada a encarar seu próprio reflexo. O conto evoca O Retrato de Dorian Gray, mas com uma reviravolta niilista: aqui, não há pacto fáustico, apenas a constatação de que as histórias que escrevemos para condenar os outros são, no fim, celas que construímos para nós mesmos. A última cena, em que Natália se torna "congelada no tempo" na própria imagem que odiava, é um epitáfio à ilusão de controle — uma metáfora brutal de como o ódio, quando cristalizado, nos reduz a meras sombras em uma galeria de espelhos quebrados.


POR QUE LER ESTE LIVRO?


Nada Aparentemente Termina Inquieto não é uma leitura confortável. É um livro que arranha, questiona e deixa cicatrizes. Mas é justamente nessa inquietação que reside seu valor. Caetano comprova que a literatura ainda é território para experimentações ousadas, onde o onírico e o real se fundem para falar do que mais importa: o humano em sua forma mais crua.


Para quem busca histórias que escapem às fórmulas prontas, este livro é um convite a perder-se — e talvez encontrar-se — nos labirintos da alma. Como escreve o autor na introdução: “Estou cansado das histórias impregnadas de certezas”. Aqui, só há perguntas. E é nelas que reside a beleza.



 

Helen Araújo é jornalista graduada pela Casper Líbero e em Artes Visuais pela Faap. Estudou direção em cinema no Instituto del Cine em Madrid.

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Caetano constrói narrativas intensas e fragmentadas que exploram a psique humana, transitando entre o onírico e o real com precisão. Seus contos abordam traumas, buscas por identidade e angústia existencial, desafiando a gente com simbolismos profundos e desfechos abertos. Apesar da escrita densa e do ritmo implacável, que poderiam dar mais espaço para a absorção emocional, o delicioso do seu estilo é que ele transforma a incompletude proposital da sua arte em força literária. O livro não oferece respostas, mas te provoca à reflexões, reafirmando a literatura como espaço de inquietação e experimentação. Leiam! Amo.

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