Depois de quatro longas, já dá para colocar com certa tranquilidade Robert Eggers na seleta lista de diretores que, ou são muito confusos quanto suas ideologias, ou tem uma incapacidade enorme de fazer coincidir as intenções com os resultados estéticos, formais e narrativos de suas obras. Ao lado de José Padilha, Zack Snyder e Todd Philips (que talvez tenha se redimido com “Coringa: Delírio a Dois”).
“A Bruxa” podia ser lido como um grande dedo do meio à sociedade conservadora, mas também como uma confirmação da perversidade da personagem de Anya Taylor-Joy. “O Farol” e “O Homem do Norte” como representações da tragédia masculina, autocrítica e reformulação da ideia de homem. Mas, que caiam num fetichismo extremo de costumes masculinistas, dialetos, corpos definidos e violência de macho. Ninguém gosta mais de homens héteros do que homens héteros.
Chegamos, então, neste “Nosferatu”. Seguindo bem à risca a história do filme original de F. W. Murnau – que por sua vez era uma adaptação não-autorizada do livro “Drácula”, de Bram Stoker – acompanhamos o pobre Thomas Hutter (Nicholas Hoult) na missão profissional de fechar um contrato imobiliário com o misterioso Conde Orlok (Bill Skarsgård), enquanto a debilitada Ellen (Lily-Rose Depp) aguarda o retorno do marido sem saber que se tornou objeto de desejo da criatura sombria.
O tempero “contemporâneo” que Eggers tenta aplicar é o do sexo. Relacionar os vampiros com seres sensualizados é padrão e, bom, o Coppola fez o predador sexual máximo em seu “Drácula, de Bram Stoker”, de 1992. Mas, a ideia aqui é a de tematizar a libertação sexual feminina. O filme abre com Ellen encarando a câmera e gemendo, como se para não deixar dúvidas. A personagem é mostrada com um apetite sexual voraz, quase atacando o marido para que eles transem na sala de estar da casa dos amigos quando estes se retiram. Os problemas de saúde, que parecem convulsões, são encenados como orgasmos.
A questão é que a vítima Ellen é culpabilizada. Por ela mesma, pelas pessoas ao redor e pelo próprio filme. É esse apetite que atrai a figura do Nosferatu, que traz morte e destruição para a vida dos protagonistas. Não importa se a intenção de Eggers é operar uma subversão, colocar como heroína a mulher que é vista pela sociedade como depravada. O olhar do filme é masculino, segue os homens em suas desventuras. A compaixão nunca é com Ellen, mas sim com Thomas e com o Friedrich de Aaron Taylor-Johnson.
O cúmulo é a cena abominável em que a mulher briga com o marido por ele ter ido à viagem de negócios. Que ela parece demonstrar ciúmes do conde. Diz que a culpa é dela, revelando um passado com a criatura. E encerra com o sexo que fica no limiar do abuso. O filme – muito literalmente, pensando na posição da câmera em relação a Ellen ajoelhada – olha de cima para baixo quando o assunto é a mulher. Não há ambiguidades no trato, pelo menos não na prática. Não há profundidade, não há subtextos. É tudo preto-no-branco e superficial, como a cinematografia que tenta imitar os filmes preto-e-branco com uma iluminação prateada horrível.
E se ainda há dúvidas sobre a obra conseguir criticar ou apenas reproduzir essa visão conservadora e misógina, temos a figura de Nosferatu. Ele é um ser do passado da protagonista que quer voltar a possuí-la. Uma criatura misteriosa, do leste europeu. O grande mal da civilização, o terror supremo que traz a peste, a morte da população e a destruição das famílias é o ex, provavelmente abusivo, da sua esposa. Gringo, alto, bombado e com bigode grosso de ator pornô. A solução para acabar com o inferno na Terra trazido pelo bicho? A morte da mulher que quer dar para o ex. Patético. Eggers reafirma a visão que os personagens têm sobre a sexualidade feminina.
É até engraçado pautar tanto essas questões sexuais quando “Nosferatu” é um filme completamente desprovido de sexualidade. É frio, sem erotismo, sem tesão. Ele quer ser um extremo da animalidade, da voracidade, mas é completamente mecânico, com movimentos de câmera travados. Quer ser hiper palpável e material com cuspe, ranho, sangue, mas cai em cenas com cenários de CGI dos mais artificiais. Trata deste horror supremo que é ao mesmo tempo metafísico e biológico, mas desperdiça a compulsão alimentar por animais e insetos de Herr Knock e olha de longe para os efeitos da peste na população porque precisa personalizar as mortes e encher Ellen de culpa.
Eggers não escolheu fazer uma história de vampiro qualquer, nem uma nova adaptação de “Drácula”. Ele escolheu refilmar “Nosferatu”, o que traz consigo toda uma aura muito própria de autoimportância. Tudo nos filmes do diretor é maximizado, para compensar o vazio de suas ideias e resultados. O desenho de som desse filme é atroz, uma gritaria descabida o tempo todo, trilha incessante. Os sustos, ou são telegrafados e encenados da maneira mais óbvia e preguiçosa possível, ou consistem basicamente de um corte rápido para um close com uma explosão do som.
Que isso seja feito com inspirações em Murnau é o que piora a situação ainda mais. O diretor tinha esse desejo de, durante o cinema mudo, fazer um filme que dispensasse completamente as cartelas de intertítulos. Tudo estava, portanto, nas imagens, extremamente significativas. Ele era um mestre da narrativa visual. Eggers não consegue nem copiar direito. A tão famosa cena da carruagem do conde, icônica em cada versão de “Nosferatu” e “Dracula”, revela a crise imaginativa do diretor. Quando ele tentar reproduzir o senso de presença constante do vampiro - que no original parece transbordar o quadro, os planos, ultrapassar a própria montagem – acaba parecendo que alguém esqueceu um videoclipe ligado na velocidade 0,5x. A sensação de confusão espacial se dá simplesmente porque é um filme muito mal iluminado, que acha que o escuro sozinho cria tensão e que a contraluz é chique.
“Nosferatu” tem essa grandiosidade e pompa, de um diretor que mira nas mitologias nórdicas e teutônicas, mas acaba acertando na estética que a Alemanha exportou para o mundo nos anos 1930. Os contra-plongées e o corpo bombado do bichão não estariam deslocados num filme da Leni Riefenstahl. Quase não tem ideias para os enquadramentos do filme, que sabotam a até boa encenação e as atuações que, dando méritos onde eles existem, Eggers costuma mesmo tirar de seus atores. Se a ideia é criar planos que se sustentem como quadros por si só, talvez esteja na hora desses diretores de filme pseudocult pararem de olhar para os enquadramentos centralizados do Kubrick e assistir mais vezes a “Barry Lyndon”.
É muito difícil entender para onde o cinema de Robert Eggers está indo, o que ele está tentando fazer. Porque, goste ou não, “Nosferatu” é muito um filme incel: completamente confuso no olhar que tem sobre as mulheres, de uma falta de sexualidade que acha que mostrar um mamilo seja grandes coisas, e que, de quebra, ainda carrega consigo uma fetichização da grandiosidade, de corpos musculosos e da violência que é francamente fascista. Independente dele querer fazer um filme assim ou não.
Numa última nota, é importante salientar que gostar ou não do filme é irrelevante. Todas as opiniões são incentivadas e válidas e uma obra de arte colocada no mundo passa a ser de posse de quem assiste. O que tem me assustado, no entanto, é que cada vez mais parece que nós deixamos de pensar nos filmes pelo que eles são e propõe e passamos a projetar o que nós queremos e acreditamos na tela. Isso não tem gerado frustração quando a obra não é o que esperamos. Pelo contrário, parece que estamos ignorando a obra e fingindo que ela é o que nós gostaríamos que ela fosse. Será que estamos tão fechados em nossas bolhas narcísicas que já não conseguimos mais nem deixar que a arte nos penetre? Se for o caso, cada um pode ficar na própria casa imaginando seus filmes perfeitos e ninguém mais precisa ir ao cinema assistir nada.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista formado pela Cásper Líbero e pós-graduado em Audiovisual pela FAAP. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
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