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Foto do escritorCaetano Grippo

Reflexões artísticas sobre o "eu" masculino.

Uma auto-análise sobre o curta-metragem ECO.


O ideal seria você assistir ao filme e ficar somente com as imagens que eu apresento. Mas os estímulos no nosso cotidiano são tantos que, se eu não escrever nada sobre os meus trabalhos artísticos, provavelmente não alcançarei tanta gente quanto gostaria. É um clichê dizer o quanto é difícil falar sobre as nossas criações. Embora os realizadores sejam constantemente confrontados com uma lógica que exige objetividade, seja pelo incentivo estatal ou privado, sei que no fundo, grande parte dos diretores gostariam de simplesmente fazer seus filmes e não serem obrigados a traduzir suas obras em palavras. Para um certo tipo de artista, falar sobre seus trabalhos é um sacrilégio. Então vamos fazer diferente. Encare esse texto como notas em um diário. Uma auto reflexão sobre as minhas ideias, os meus processos.


Espero que de alguma forma este texto faça algum sentido para você. Mas antes, talvez seja interessante você assistir ao filme que comento. Ele está disponível aqui no Espaço Rasgo. O valor do aluguel é de singelos R$ 4,99, mas é um valor muito importante para você contribuir para mantermos a estrutura do nosso espaço, além de fazer parte de projetos futuros.



Não gosto da definição “experimental”. Em nenhum momento tratei o filme ECO desta forma, embora a feitura de um filme, muitas vezes, permita que possamos encontrar diferentes caminhos durante a sua produção, através de testes, escolhas distintas, experimentando (ironicamente). Da escrita ao corte final há muitas possibilidades para se criar e recriar a história. Mas em muitos lugares que ele foi exibido, pessoas trouxeram esse rótulo indesejado ao filme. Acho que para o grande público, "experimental virou sinônimo de “não compreensão", já que estamos tão acostumados com as formas "clássicas" no audiovisual. Então, qualquer filme que fuja da fácil compreensão, logo recebe tal definição.


O filme não é de fácil digestão. Eu sei. Tentei ao máximo fugir dessa palavra, mas quando vemos o nosso trabalho sendo rejeitado em muitos festivais, você acaba repensando a estratégia na hora da divulgação. Talvez seja melhor ter seu filme selecionado na categoria experimental do que não estar presente em lugar nenhum. Mesmo assim, alguns festivais foram muito receptivos com o filme, o aceitando como diferentes gêneros: suspense, drama ou terror. Como é o caso de um grande festival chamado Slemani International Film Festival, que acontece no Oriente Médio, mais precisamente na cidade de Slemani no Iraque. Quando recebi a notícia da seleção, fiquei estarrecido. O festival recebe grandes filmes do mundo todo e conta com uma estrutura que lembra os grandes festivais europeus, além de ser televisionado. E quem não ficaria feliz de estar no mesmo festival que Apichatpong Weerasethakul, diretor tailandês que tanto admiro.


Mesmo assim, sei que o filme poderia ter ecoado (não resisti ao trocadilho) em muitos outros festivais se a sua temática estivesse mais clara. Se o espectador conseguisse dizer “esse filme é sobre a dor de um homem diante do amor que sente por uma pessoa”, talvez o filme teria outra recepção. Nunca saberemos.

Meus filmes são sobre masculinidade. Pode parecer estranho dado a roupagem que coloco ao entorno das narrativas, mas as histórias que conto sempre giram ao redor do conflito entre o masculino e o feminino. Foi no meu primeiro filme, Glacial Inferno de 2010, que notei a forte presença do tema, embora eu não tivesse a clareza exata do que eu estava fazendo. A forma que escrevo, que imagino e conduzo a narrativa, me permite deixar que inconscientemente eu acrescente elementos que não estão muito claros conscientemente. Eu imagino um acontecimento, personagens sendo conduzidos por esse evento e, tudo que está oculto, surge durante o processo de criação.


No filme não existem personagens aos moldes de Stanislavski. Os personagens não possuem um passado, uma história pregressa e muito menos traços que determinem seus caráteres morais. São arquétipos. São representações daquilo que está presente na imagem e se transforma conforme a sua disposição no espaço cênico. Quero dizer: ao privar o espectador de um entendimento mais amplo da personalidade de uma personagem, o que resta é sua presença como símbolo. Complexo?


Na verdade nem tanto. O que eu espero é que o espectador se relacione como se estivesse assistindo a uma sucessão de quadros, de pinturas e que a disposição dos elementos e dos símbolos seja mais rica do que o discurso falado. Do que a razão. Por isso a primeira fala do filme é uma pergunta: “Razão?". É como se a personagem pedisse ao espectador que ele a abandonasse, pois não estamos no campo da razão. Estamos no campo do inconsciente, da não palavra, da não linguagem. O que nos resta é uma estrutura visual.


Com essa estratégia eu acredito que estou dialogando com o espectador em outra instância. Me aproprio de como os nossos sonhos se formam, da sua mecânica de construção simbólica e com isso consigo introjetar essas imagens no seu imaginário. E não somente imagens, mas também sons, sensações e sentimentos.


O evento em Eco é muito simples: uma mulher foi agredida e está sem memória. Não sabemos quem é e nem o que aconteceu de fato. Ela está conversando com uma mulher mais velha, uma cartomante, tentando entender onde está uma pessoa conhecida que desapareceu. Essa foi a imagem que eu tinha em mente e queria explorar. Então, comecei o processo da escrita do roteiro, sem saber sobre o que escrevia e sem saber o caminho da história. Até mesmo consultei o tarô para ele clarear o que estaria me motivando a contar aquela história. As cartas que aparecem no filme são as exatas cartas que o jogo me apresentou, clareando o caminho que eu queria confrontar em mim mesmo.


Naquela noite eu sonhei que estava estrangulando um ex-namorado da pessoa que eu namorava na época. O sonho foi muito verdadeiro, minhas mãos tremiam e eu não o soltei até ouvir seu pescoço quebrar. Em seguida, eu percebi que estava acompanhado de outras pessoas. Eu pedi ajuda para esconder o corpo, mas aos poucos fui notando que essas pessoas não estavam ao meu lado. Eu não as reconhecia, tinha medo. Então comecei a me afastar. Mas na tentativa de sair correndo, fui alcançado por todas elas, que me engobaram em um violento abraço, como se fossem me devorar. Fiquei preso em meio aquelas pessoas até perceber que aos poucos eu fazia parte daquele todo. Um emaranhado de corpos, de corpos masculinos, ao qual eu fazia parte.


Começou assim: uma cena que pairava na minha cabeça e um sonho que tive. No roteiro eu trouxe essa junção, criei um paralelo, como se ambos os momentos estivessem acontecendo ao mesmo tempo. Quando terminei a terceira versão do roteiro, fui conversar com os atores que eu estava imaginando enquanto escrevia. O elenco que você vê no filme é o exato elenco que eu imaginei, mas isso não quer dizer que todos toparam o processo logo de início.


Como você deve imaginar, o roteiro não trazia uma clara intenção do que eu queria com o filme. E para um ator, o maior pesadelo, talvez, seja entrar em um projeto sem muita clareza. Mas insisti para que eles confiassem no projeto, já que eu pretendia encontrar muitas coisas durante as filmagens. Para você ter uma ideia, a estrutura final só foi encontrada durante o processo de montagem, que levou mais de um ano para se chegar ao corte final. Antes disso, nada estava claro de como o filme seria contado. Os irmãos gêmeos que aparecem no filme não estavam programados. Foi no dia da filmagem que a produtora me disse que o ator mirim tinha um irmão gêmeo e eu pensei “isso é ótimo, traga os dois”. E a partir dessa decisão, tudo que estava planejado com o menino foi alterado. Eu nem me lembro o que originalmente eu havia escrito, mas sei que a presença do irmão gêmeo mudou completamente o rumo do filme.


Essa forma estranha de encarar um projeto artístico veio do universo das artes plásticas. Quando estudei cinema, minha visão ficou muito rigorosa. Queria ter controle de todo o processo e de todas as etapas da narrativa. Acreditava que controlar todo o processo de criação faria com que meus filmes fossem exatamente o que eu desejava que eles fossem, uma impressão das imagens na minha cabeça. Acontece que as outras práticas artísticas começaram a me mostrar que eu tinha uma lógica interna muito diferente, que a minha inteligência estava mais diretamente associada em perceber os acasos que ocorriam durante o processo de criação e saber como aproveitá-los, reorganizando a sua existência dentro da narrativa.


Essa inteligência se deve ao fato de como passei a encarar os elementos inconscientes de uma história. Como Alejandro Jodorowsky diz, não se pode ensinar o inconsciente a falar a linguagem da realidade, precisamos ensinar a razão a falar a linguagem dos sonhos. E é isso que faço. Não acho que ECO é um sonho. ECO é contado como se fosse um sonho. Nossa razão precisa estar ativa, atenta a pequenos elementos e encontrar sentidos e significados mais profundos naquelas imagens. E não tenho a intenção de que ninguém encontre exatamente o que eu imaginei, ou afirmar que exista uma verdade maior a ser apresentada. O filme é também essa busca, essa procura por sentidos que o espectador exerce.


Já recebi diversas devolutivas sobre o filme, de pessoas que realmente dedicaram um tempo assistindo ao filme, se relacionando atentamente com ele. E o tema que eu propus, de uma forma ou de outra, sempre aparece quando esse espectador se propõe a discorrer sobre o filme. O desejo de um homem por uma mulher, o medo da violência dos corpos masculinos, o medo que sentimos quando amamos alguém e principalmente, o desejo de querer ser único para alguém.



- Querer ser único.


Isso é o que ecoa no espaço, na mente do protagonista. Quando escrevi essa fala, ela se perdeu em meio a um longo texto que a cartomante recitava. E tudo isso foi filmado. A frase estava jogada no meio de uma verborragia que envolvia Deus, sexualidade, entre tantas outras coisas. Foi na edição que surgiu a decisão de tirar toda a fala da personagem e fazer com que a frase se repetisse como um eco. Até então, não havia nenhuma intenção de ter algo “ecoando” de fato. Acredito até que quem trouxe a solução estética ao som do eco foi a trilhista Giulia Borducchi, junto com seu parceiro Isaias Barbosa.


Sou uma pessoa muito fiel à ideia de estrutura, narrativas bem construídas, mas quando produzo algo, aparento fugir de tudo isso. Uma das coisas que eu aprendi assistindo aos filmes de David Lynch foi entender em como ele conduzia suas narrativas. Seus filmes parecem confusos, sem sentidos, somente imagens e sequência sendo apresentadas ao espectador sem nenhuma razão aparente. Mas isso é um grande equívoco. Quando nos sentamos e nos relacionamos com o seu trabalho, percebemos que ele tem uma orquestração muito precisa, exata e muito lógica.


Gosto muito dos filmes clássicos, das histórias muito bem amarradas e com lógicas internas que fazem muito sentido. Sinto uma alegria enorme ao sentar na poltrona da sala do cinema e sair de lá com alguma história muito bem contada. Mas como criador, talvez esse não seja um caminho que eu queira trilhar. Acredito que um filme como ECO consiga atingir lugares que as narrativas tradicionais clássicas não consigam. E passei a viver em paz com essa escolha artística.


E até ouso dizer que o filme ECO não tem nada de experimental. Continuo sentindo que há uma tentativa de diminuir o filme quando afirmam algo assim. Mas vivo em paz com essa sua condição. No fundo, sei que o filme é uma obra muito bem amarrada no seu próprio inconsciente e a sua condição de existência.


E sim, eu sei que parece loucura.

E no fim das contas, é mesmo. Pura loucura.



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