A compreensão do nosso contexto histórico e social é essencial para definirmos quem somos e como nos enxergamos dentro de uma comunidade mais ampla. Como brasileiros, falamos português e, por meio dessa língua, estabelecemos nossas primeiras conexões com o mundo ao nosso redor. As palavras que utilizamos e a estrutura de nossa língua atuam como guias para nossa percepção da realidade, definindo e moldando nossas experiências. Cada idioma carrega suas peculiaridades e, ainda que a tradução permita comunicação entre culturas diferentes, o processo de traduzir é sempre complexo e carrega seus próprios desafios e limitações. Afinal, como transmitir com exatidão as nuances e as intenções de uma língua para outra, respeitando as sutilezas culturais e os significados subjacentes?
Traduttore, traditore.
(Tradutor, Traidor.)
A língua não é apenas um veículo de comunicação; é uma extensão da cultura e do pensamento de um povo. Assim, quando falamos em tradução, não estamos apenas trocando palavras, mas interpretando uma série de elementos culturais, sensoriais e filosóficos que podem ter significados diversos em contextos diferentes. Tradutores profissionais sabem bem disso. Cada escolha que fazem representa uma decisão sobre o que adaptar, enfatizar ou até deixar para trás. É daí que vem o célebre provérbio italiano: Traduttore, traditore (tradutor, traidor). Nesse contexto, um tradutor não "trai" uma obra por falta de respeito ao texto original, mas sim por necessidade, pois traduzir exige adaptação, e adaptação muitas vezes implica transformação.
Esse fenômeno linguístico levanta questões profundas sobre como nossa percepção do mundo é influenciada pela língua que falamos. No Ocidente, buscamos a precisão das palavras, na tentativa de transformar o mundo em uma sequência ordenada de conceitos e ideias claras. Contudo, no Oriente, o pensamento filosófico tradicional frequentemente recorre a metáforas e alegorias para expressar noções complexas sobre a natureza e a existência. Não há busca pela objetividade exata que caracteriza a linguagem ocidental; pelo contrário, a ambiguidade é um valor, uma forma de respeitar a multiplicidade de interpretações e experiências.
A linguagem chinesa, por exemplo, ao privilegiar a ideia sobre o som, possibilita uma filosofia mais próxima do abstrato, onde conceitos como harmonia e dualidade são explorados por meio de símbolos e metáforas. Essa característica linguística reflete-se em correntes filosóficas orientais como o Taoísmo e o Budismo Zen, que buscam o entendimento intuitivo do mundo em vez de uma análise racional e linear. Em contraste, as línguas ocidentais, ancoradas em estruturas sintáticas e gramaticais rígidas, tendem a organizar o pensamento de maneira lógica e sequencial, levando a uma percepção que privilegia o pragmatismo e a objetividade.
É interessante questionar até que ponto nossa língua molda nossa própria filosofia. Será que a estrutura do português, com suas regras gramaticais precisas e vocabulário definido, influencia nossa maneira de entender e experimentar o mundo? E, mais importante, o que ganhamos e perdemos ao ler obras traduzidas? Em muitos casos, o leitor de uma tradução pode ter uma experiência radicalmente diferente daquele que lê o texto original. Quanto de uma obra chinesa, por exemplo, se perde ao ser vertida para o português? E quantas outras experiências poderiam enriquecer nossa visão do mundo se tivéssemos acesso direto a línguas e culturas tão diferentes da nossa?
Como diz Humberto Rohden, tradutor do Tao Te King de Lao Tsé:
Na escrita ideográfica trate-se mais de sentir, adivinhar, farejar o sentido exato de cada símbolo, do que, propriamente transliterar o respectivo ideograma. [...] A organicidade elástica de um ideograma oriental permite grande número de variantes, quando expressa pela mecanicidade rigida de um vocabulário ocidental.
Embora a linguística ofereça respostas técnicas para muitas dessas questões, a busca por uma compreensão mais profunda sobre a relação entre língua, cultura e experiência transcende o campo acadêmico. Em vez disso, é uma questão artística e existencial. Como artistas, questionamos nossa própria condição humana por meio da língua, investigando as formas como ela nos limita ou nos libera para experienciar o mundo. E nessa investigação, muitas vezes as respostas exatas não são o que buscamos. Estamos interessados em como a língua nos permite experimentar o mundo, a nos sentir parte de algo maior, e em quantas formas de experiência desaparecem quando não temos contato com outras culturas.
Do ponto de vista psicanalítico, a linguagem é mais do que um meio de comunicação; ela constitui o próprio tecido pelo qual se estrutura o inconsciente. Freud, ao elaborar a teoria do inconsciente, reconheceu que pensamentos, emoções e impulsos não se apresentam de maneira direta, mas sim através de "significantes", ou seja, representações simbólicas na linguagem. Já Lacan, ampliando essa visão, afirmou que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", o que implica que nossas experiências e desejos são constantemente interpretados e reinterpretados pelos filtros linguísticos que aprendemos ao longo da vida. Nessa perspectiva, traduzir um texto é, em alguma medida, reinterpretar um conteúdo inconsciente, e esse processo de "traição" inevitável, ao qual nos referimos anteriormente, pode ser visto como uma reencenação da maneira como o inconsciente distorce, adapta e oculta informações para torná-las acessíveis ao consciente. é como ver na linguagem um meio de elaborar as próprias angústias e conflitos de cada cultura, sugerindo que as diferenças linguísticas e culturais revelam também singularidades no modo como cada sociedade lida com temas como desejo, identidade e repressão. Nesse sentido, traduzir uma obra literária é também um processo de adaptação do inconsciente coletivo de uma cultura para outra, o que aprofunda a riqueza e a complexidade da experiência linguística.
A linguagem é mais do que um conjunto de palavras e regras; é um espaço de possibilidades e também de limitações. Cada tradução que lemos, cada troca entre idiomas, nos leva a um vislumbre do universo do outro, ainda que filtrado pelas lentes da nossa própria língua e cultura. Ao reconhecer a riqueza e os desafios da tradução, nos aproximamos de uma compreensão mais profunda do valor da diversidade linguística e da importância de preservar as singularidades culturais que nos fazem humanos.
Ao nos abrirmos para o "farejar" de símbolos e sentidos, como sugere Rohden, convidamos o leitor a mergulhar nas camadas de significados que ultrapassam o racional, adentrando o campo das experiências e das emoções. A tradução, com toda a sua complexidade e beleza, se torna, assim, uma ponte entre mundos que, embora diferentes, compartilham a busca pelo sentido. Essa busca nos ensina que cada idioma oferece uma maneira única de ver e entender a vida e que, no fim, a riqueza da experiência humana está em sua multiplicidade – um universo vasto e colorido que espera ser explorado.
Como essa questão pode nos afetar como artistas? Ou nos auxiliar no nosso processo de criação e reflexão?
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