The Last Of Us 2 - O que não pode faltar na série.
- Caetano Grippo
- 9 de fev.
- 10 min de leitura
Há muito tempo quero escrever sobre The Last of Us 2. Sei que existem muitos canais especializados em videogames, mas queria trazer à tona aspectos que as pessoas não costumam abordar nos debates promovidos por influenciadores. Confesso que a maioria dos temas discutidos nesses espaços pouco me interessa.
O que realmente me atrai nas narrativas são seus aspectos psicológicos, suas estruturas narrativas, as relações afetivas estabelecidas entre os personagens e, principalmente, as conotações psicanalíticas que emergem quando nos conectamos profundamente com uma história: aquilo que o jogo nos permite explorar, mas que não está explicitamente declarado em sua superfície.
Decidi, então, elencar os melhores momentos do jogo e discutir cada um deles. Este texto tem duas características centrais: a primeira é uma lista de reflexões e curiosidades; a segunda, uma análise crítica voltada para os elementos narrativos em destaque.
Como alguém familiarizado com cinema, reconheço as limitações da linguagem cinematográfica. Os jogos, por sua vez, possuem ferramentas expressivas que o cinema já não consegue replicar — e quando tentou se apropriar delas, o resultado foi problemático. Basta lembrar de Bandersnatch, da série Black Mirror, que fracassa tanto como filme quanto como experiência interativa.
Diante dessa diferença entre as mídias, resolvi analisar The Last of Us 2 e também destacar o que a série de TV não conseguirá adaptar. A comunicação plena da obra só se estabelece por meio da interação, e é justamente na ausência dela que a adaptação perderá momentos extraordinários. Por isso, esta lista também assume um terceiro papel: servir de spoilers quem não jogou e quer saber o que esperar da próxima temporada da série.
Vale ressaltar que não me defino como geek, muito menos como viciado em jogos. Portanto, não espere deste texto uma avaliação baseada apenas em preferências pessoais.
O SENTIMENTO DE QUE SOMOS RESPONSÁVEIS

Uma nova personagem é apresentada. Pelos trailers, já sabemos que Abby estará presente na segunda temporada da série — seria impossível excluí-la da trama. No entanto, há uma diferença crucial: na série, não vivenciaremos o peso da maior das culpas, aquela que o jogo nos impõe ao nos fazer conduzir Abby até seu objetivo final: matar Joel.

A crueldade dos criadores do jogo talvez represente uma das experiências narrativas mais brilhantes da obra. Eles nos obrigam a controlar Abby, a salvá-la de situações de risco, a interagir com sua vítima e, gradualmente a colocarmos Joel em uma emboscada. Abby tortura e executa Joel, e somos nós, jogadores, quem a guiamos até ali. A interatividade transforma-nos em cúmplices — não há espectador passivo aqui, apenas responsabilidade compartilhada.

O ÚLTIMO OLHAR ENTRE JOEL E ELLIE
Diante da cena cruel em que Joel é torturado e assassinado, Ellie é forçada a testemunhar tudo – não como uma extensão da perversidade daquele momento, mas por ter chegado ao lugar e na hora errados.
Conforme acompanhamos os flashbacks, percebemos que Ellie vai perdendo o senso de humor e se enrijecendo, assim como Joel, que perdeu a filha no início da pandemia de zumbis. Porém, a crueldade de ser obrigada a presenciar a tortura e a morte de sua figura paterna faz com que Ellie perca definitivamente todo o encantamento pela vida, aprisionando-se em um desejo de vingança.
Nada mais restará a Ellie.
A ÚLTIMA VISITA À CASA DE JOEL

É desafiador eleger o momento mais visceral e poeticamente denso de The Last of Us 2, mas a cena em que Ellie explora a casa de Joel após sua morte emerge como uma das sequências mais eloquentes e emocionalmente devastadoras da obra. Nada de espetacularidade ou ação: nossos comandos são limitados, as armas ausentes. Estamos vulneráveis, física e metaforicamente, imersos num silêncio que amplifica o peso da ausência.
Ao adentrarmos a residência, restam-nos apenas gestos mínimos. Caminhamos entre móveis que ecoam um vazio que transcende o espaço físico, iluminados pela luz âmbar do entardecer que tinge os cômodos de melancolia. A quietude transforma cada objeto em testemunha muda de histórias não contadas.
À primeira vista, os artefatos revelam o essencial sobre Joel: a filha perdida, seu irmão, os cavalos, Ellie. Porém, uma observação mais atenta desvenda uma gramática íntima na disposição desses elementos. Os objetos não são meros adereços, mas hieróglifos afetivos que reconfiguram nosso entendimento das relações. Ellie, progressivamente assimilada à família, ocupa paredes antes dedicadas exclusivamente a Sarah e Tommy. Seu retrato se iguala aos dos entes mais queridos – mas com uma ressalva crucial.
A fotografia de Ellie com Joel e um cavalo carrega nuances reveladoras. Diferente das outras imagens, que podem ser examinadas de perto, esta permanece inacessível. O jogo não nos permite agarrarmos aquele retrato. Ellie jamais assumiu o papel de filha, assim como Joel evitou cristalizar verbalmente seu afeto paternal. E é precisamente nesse não-dito que residem as camadas mais comoventes da narrativa.
A genialidade está no que Joel não fez, mas insinuou: incapaz de vocalizar seu amor, ele o transmuta. Cavalos – elementos centrais na foto com Ellie– proliferam pela casa como manifestações subliminares de seu cuidado. Estampados em pinturas que celebram liberdade, tornam-se arquitetura de um afeto inconfessável. Cada representação funciona como uma espécie de deslocamento (sob a visão psicanalítica) do vínculo com Ellie: uma devoção tão vasta que só pode habitar nas entrelinhas do espaço doméstico.
The Last of Us 2 reafirma, aqui, a maturidade dos games como um meio narrativo. Esta cena específica, porém, opera uma alquimia singular: apropria-se da linguagem cinematográfica – planos contemplativos, iluminação simbólica, encenação minimalista – para criar um close-up expandido da alma humana. Se o cinema nos permite ler microexpressões, os games, nesse caso, nos convidam a decifrar microcosmos. O resultado é uma experiência que transcende categorias: não é "cinema interativo", mas a consolidação de uma nova forma de poesia sensorial, onde o jogador não assiste à melancolia, mas a respira.

O VIOLÃO COMO PERSONAGEM

Embora eu não goste nem um pouco da ideia de atribuir aos objetos o caráter de personagem em uma história, entendo que fazemos isso por mera conveniência para destacarmos a importância deles na trama. No trailer, podemos ver Joel e o violão pelo menos uma vez.
Mas ele não é um mero objeto ocupando espaço. É um elemento central da poética narrativa: nele residem as lembranças que Ellie guarda de Joel. É o símbolo do ensinamento que Ellie deseja transmitir ao filho que teve com Dina. E é também onde repousa todo o fracasso do desejo de vingança, quando Ellie conclui a história sem cumprir seu objetivo e perde os dedos necessários para tocar a música que Joel lhe ensinou.
ELLIE VIAJA PARA O ESPAÇO



A PONTE DOS SERAPHITES
Não sei como o termo "Seraphites" foi oficialmente traduzido para o português — talvez mantenham o original ou adotaram"Serafitas" (já que "Seraphim" é traduzido como "Serafins", mas a seita tem nuances próprias). De qualquer forma, é difícil não imaginar como a icônica ponte dos Seraphites será representada em live-action na série da HBO. A estrutura decadente, tomada pela vegetação e marcada por rituais do grupo, é um dos cenários mais impressionantes de The Last of Us Part II.
Sobre a adaptação: embora haja especulações sobre a divisão da segunda parte do jogo em duas temporadas (não quatro, como circulou em alguns rumores), a HBO ainda não confirmou oficialmente o formato. É provável que o enredo denso e os arcos emocionais exijam mais espaço, mas quatro temporadas soam exageradas — talvez o número tenha sido um equívoco em fontes não oficiais.
Quanto ao Lev, a ausência de notícias sobre o elenco faz sentido. O personagem só aparece na metade do jogo, e sua história está intrinsecamente ligada a momentos-chave que podem ser adaptados mais tarde na série. A produção costuma priorizar anúncios conforme a fase de gravação, então é possível que o ator seja revelado apenas quando as filmagens da temporada correspondente começarem.
Sobre a ponte: mesmo que apareça na série, ainda teremos uma longa espera. A segunda temporada da produção, prevista para 2025, deve cobrir apenas eventos iniciais da trama. Enquanto isso, resta apreciar o visual impactante do jogo — com sua atmosfera sombria e detalhes simbólicos — e imaginar como a HBO trará essa paisagem pós-apocalíptica para a vida real.
A A FALÊNCIA DO TEOLOGISMO E DO MILITARISMO

A relação entre Abby e Lev é o ponto central da transformação dramática de Abby. É nesse momento da narrativa de The Last of Us 2 que nossa conexão com a personagem se aprofunda, humanizando-a de maneira visceral. Através desse vínculo, compreendemos não apenas suas motivações, mas também as perdas que a moldaram — um contrapeso necessário à sua imagem inicial de vingança implacável.
A história, porém, transcende a simples dinâmica de uma protagonista que se sensibiliza por crianças em perigo. Abby já está em ruptura com os Wolves (Lobos) antes de encontrar Lev: seu desligamento do grupo militarista começa ao testemunhar a perseguição cruel de Isaac, líder dos Wolves, à pessoa que ama, Owen, acusado falsamente de traição. Esse momento expõe a hipocrisia de uma estrutura que Abby outrora defendera. Os Wolves, estabelecidos nas muralhas de um estádio fortificado, operam sob uma lógica de expansionismo violento — invadem territórios, pilham recursos e eliminam dissidências para manter poder, isolados num mundo reduzido a "nós versus eles".


Já Lev, por sua vez, é produto de uma comunidade oposta em essência, porém igualmente opressora: os Serafitas (reforço que não sei se foi traduzido dessa forma), liderados por uma profetisa que usa a fé como ferramenta de dominação. Sua doutrina promete proteção espiritual em troca de submissão cega, construindo um imaginário coletivo baseado em rituais e punições. A resistência de Lev às normas de gênero impostas pelo culto — e sua fuga ao lado de Yara — simbolizam uma rebelião paralela à de Abby, criando um profunda conexão entre ambas as jornadas.
Assim, o salvamento de Lev e Yara não é um ato de mero altruísmo, é também um ato político: Abby rejeita tanto o autoritarismo militarista dos Wolves quanto o fanatismo dos Serafitas, encontrando em Lev um propósito que a reconecta com sua humanidade dilacerada. A relação entre os dois desmonta a falsa dicotomia de "civilização versus barbárie", mostrando que a violência — seja justificada por ideologias, religião ou sobrevivência — é um ciclo que só se quebra com escolhas que humanizem as relações.

A GUERRA ENTRE OS WOLFS E OS SERAFITAS
A ESTRUTURA ESPELHADA
Existe um elemento fundamental na estrutura narrativa de *The Last of Us 2* que agrega um grande valor à dramaturgia, especialmente na relação entre Ellie e Abby. A estrutura, embora muito diferente quando analisamos os eventos vividos por cada uma das personagens, possui uma semelhança profunda, principalmente no campo simbólico.
Ambas têm um par amoroso, uma espécie de âncora que tenta afastá-las da obsessão pela vingança. Até certo momento, Dina e Owen se entregam ao desafio de ajudar Ellie e Abby a encontrar aqueles de quem desejam se vingar, mas, com o tempo, colocam o amor que sentem à frente e insistem para que elas desistam.
Enquanto Abby se refugia nas profundezas do oceano — ou na representação que um aquário oferece —, Ellie deseja as alturas, o espaço, desbravar o universo. Se pensarmos em uma dinâmica taoísta, há uma clara oposição na constituição dessas personagens, como se fossem de naturezas completamente distintas. O jogo trabalha esses contrastes o tempo todo, mas eles podem passar despercebidos, já que os intervalos entre as histórias são longos.
Tudo gira em torno da figura paterna e da importância dessas presenças na vida das personagens. Há algo profundamente significativo em uma história ambientada em um cenário pós-apocalíptico, onde a humanidade enfrenta um inimigo comum, mas, ainda assim, sua obsessão e destruição recaem sobre si mesma. É quase uma alegoria sobre a incapacidade do ser humano de lutar contra os percalços que a natureza impõe.
No contexto taoísta, a oposição entre Ellie e Abby pode ser vista como uma manifestação do equilíbrio entre yin e yang. Abby, associada ao oceano e à profundidade, representa o peso da culpa, o instinto de proteção e a conexão com o passado. Já Ellie, ligada ao céu e ao espaço, simboliza o desejo de transcendência, a busca por algo além da dor e a necessidade de escapar de sua própria humanidade. Essas forças, embora opostas, não existem isoladamente — elas se complementam e se transformam ao longo da narrativa. O jogo constrói essa dualidade de maneira sutil, reforçando a ideia de que não há bem ou mal absolutos, apenas ciclos de ação e reação que se alimentam mutuamente.
A ALUSÃO A CRUXIFICAÇÃO DE ABBIE
A IMAGEM MAIS BONITA DO JOGO
Os influêncers costumam levantar a questão sobre a possibilidade de um eventual The Last of Us 3. E junto com essa possibilidade sempre jogam a pergunta: você prefere uma história nova ou uma continuação na história de Abby e Ellie?
Sempre me indago com essa questão, já que, quem acredita na possibilidade da continuidade dessa história, talvez esteja desconectado das motivações das personagens e do jogo simbólico que sustentava o conflito entre as duas.
Ellie se redime ao ver a condição de Abby. Percebe que ver o sofrimento de Abby não irá curar a falta que Joe faz.

A LUTA MAIS CRUEL DE TODAS

AS REDENÇÔES NO SIGNIFICANTE NOME-DO-PAI
Quando Abby salva Lev e sua irmã, ela encontra sua redenção. Ao trair seu grupo militarizado e estabelecer uma nova conexão afetiva com o inimigo, o sonho recorrente do dia da morte do pai finalmente cessa. Abby vê seu pai pela última vez, orgulhoso e sorridente, no mesmo lugar onde costumava vê-lo morto.
O mesmo acontece com Ellie. A lembrança de sua última conversa com Joel vem à tona segundos antes de matar Abby, um momento sem volta. Como se aquela memória surgisse para dizer: "Você já o perdoou pelo que ele fez no passado. Você entendeu o que ele significava para você. Você não precisa carregar essa culpa."
Mais do que uma história sobre vingança, The Last of Us trata da nossa capacidade de compreender o que motiva o ser humano. Não se trata de legitimar a barbárie, mas de encontrar caminhos para interromper os ciclos de violência.
A própria natureza já é inimiga o suficiente para a existência e perpetuação da humanidade. E, para romper esse ciclo, nada como uma narrativa em que o feminino reencontra um caminho possível, onde o masculino não consegue enxergar saída. Trata-se de uma sabedoria, da dor do amadurecimento, onde não faz sentido continuar destruindo apenas para apaziguar o próprio sofrimento.
Considero The Last of Us uma das mais belas narrativas clássicas que a linguagem cinematográfica, aliada à interatividade, consegue proporcionar. Mais do que uma imersão rasa—onde o espectador/jogador se perderia apenas em uma experiência sensorial—o jogo traz a possibilidade de refletir sobre o que talvez seja o sentimento mais abundante da contemporaneidade.
Quando alguém critica narrativas apocalípticas de forma leviana, como se fossem apenas um sintoma do capitalismo (aquele clichê infantil de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo), ignora o fato de que as histórias têm o poder de subverter a condição original na qual os personagens foram colocados. Essa condição nos faz pensar no fim, mas a história é sobre como podemos ir além dessa ideia de fim.
Quando Abby e Ellie percebem que as imagens masculinas de seus inconscientes encontraram sua redenção internamente, não há mais necessidade de encarar o mundo apenas pela ótica da destruição. Há motivos para continuar se reorganizando, mesmo sem uma orientação exata sobre qual sociedade queremos construir.

Post scriptum: não foi nenhum esforço falar da essência de uma história de zumbis sem sequer mencioná-los. Afinal, eles são meros coadjuvantes que atravessam nosso caminho. Superamos os alienados que nos cercam para encontrar a resposta que, muitas vezes, sempre esteve ali.

Caetano Grippo (@caetano.grippo) é cineasta, escritor, artista plástico e coordenador do Espaço Rasgo. Formado pela Academia Internacional de Cinema e pela Belas Artes, acumula duas décadas de experiência como artista multidisciplinar.
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