Filmes que caibam dentro de mim
e que eu caiba dentro deles.
Os filmes de terror, horror ou suspense geralmente são aqueles que melhor constroem alegorias sobre as questões humanas, sociais, coletivas e individuais. E a alegoria não é um mero jogo comparativo entre realidade e fantasia. Alegorias são estruturas concisas e simbólicas que nos permitem criar um diálogo entre a realidade e o inconsciente, elucidando questões, trazendo à tona sintomas sociais e tantas outras potências viabilizadas por essa figura de linguagem.
“Fuja” é um filme de gênero. Assim a Netflix o vende e assim o filme se apresenta, logo no início, pela forma como contrasta suas imagens, pelo corpo sonoro e pelo tom com que as personagens interagem. E, como na maioria dos filmes de terror, somos rapidamente apresentados ao tema: uma mãe extremamente controladora não permite que sua filha tenha uma vida normal em prol de uma superproteção contra as ameaças do mundo.
Logo nos primeiros minutos suspeitamos qual caminho a narrativa vai seguir, afinal, o trailer, a sinopse e todo o material de divulgação já trabalharam a temática principal e deram os devidos "spoilers". E não há problema algum em explicitar a sua temática comercialmente, afinal, um filme precisa ser visto e cobrir o seu investimento. Porém, o que me traz desconforto é a forma com que a trama se desenrola e se estrutura. Nenhuma cena acrescenta nada ao corpo da narrativa, nenhuma personagem tem sua complexidade psicológica expandida e o que poderia ser uma rica narrativa sobre os tempos atuais se resume inteiramente em uma frase já antes exposta: uma mãe extremamente controladora não permite que sua filha tenha uma vida normal...
A partir daqui, sigo com comentários que revelam a trama principal do filme.
Nossa protagonista é Choe, uma adolescente esforçada que superou todos os desafios de sua deficiência física. É inteligente, simpática, de uma índole inquestionável. Em dado momento da história, a menina se depara com evidências de que sua mãe tomava atitudes inaceitáveis para impedi-la de sair de casa, como por exemplo a fazer ingerir remédios que agravavam a sua condição. A partir desse momento, o filme segue com uma sucessão de cenas que não agregam mais nada ao caráter da personagem ou à sua relação com a mãe, sem ainda ampliar o nosso entendimento sobre a trama. Tudo gira em torno dessa descoberta e o que vemos a partir daí são as lutas e tentativas da protagonista para resolver a situação e sobreviver. Fica evidente que o filme não possui nada além de uma ideia pronta, explorada incansavelmente. Uma mera luta entre o bem e o mal.
Nos últimos anos, o mercado de séries ascendeu exponencialmente, e ficamos habituados a protagonistas em uma longa jornada de dezenas de episódios. Tendo esse parâmetro em nosso horizonte, é difícil encarar um filme com personagens que não possuem nenhum desvio de caráter, ou sequer contradições. Pode ser que muita gente se relacione com a narrativa com profundidade, identificando-se no conflito maternal, mas considero de grande importância o hábito de se olhar para os filmes além de sua ideia central, de sua intenção. Não quero me deparar com uma ideia pronta sobre o mundo, com uma garota moralmente perfeita que sofre nas mãos de uma mãe monstruosa. Melhor dizendo: com personagens que foram produzidos e não desenvolvidos, elaborados.
A diferença entre essas duas palavras - produzir e desenvolver - traz à tona uma distinção profunda a respeito do processo de criação artística, pois muitas vezes na ânsia de acertar, de conquistar o público e vender, seguimos fórmulas básicas de construção narrativa e não exploramos os potenciais que uma trama simples poderia potencializar caso os criadores aceitassem os desafios e convivessem com possíveis equívocos. Ao explorar a relação entre mãe e filha, poderiam, por exemplo, evocar a natureza mítica dessa relação e aludir a contos e histórias já narrados anteriormente nas mais distintas civilizações.
O filme faz referência direta a um clássico chamado “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?” (What Ever Happened to Baby Jane, direção: Robert Aldrich, 1962), embora o filme de 1962 trate da relação entre irmãs e não de mãe e filha. Porém, mesmo evocando um filme que explora tão bem a natureza das diferenças entre as irmãs, “Fuja” se equivoca ao não explorar situações entre Diane e Chloe. O personagem é tudo o que sustenta a arquitetura de um enredo. Obviamente, existem cenas entre as duas, em que dialogam, gritam, se agridem. O que estou questionando é justamente a limitação dessa relação. Nada é revelado sobre as profundezas psíquicas de ambas as personagens, o que vemos é meramente a solução de uma trama banal.
Alguém poderia afirmar que há uma alegoria particular no filme, algo sobre o sentimento protecionista de uma geração de pais que entopem seus filhos de remédios, cuidados extravagantes, aplicativos de rastreamento, etc. Mas qual é o real potencial da trama em explorar essa questão? Não há imagens que atinjam nossa percepção visual e que explorem nossas sensações para além da aflição e do medo. Não há personagens que expressem qualquer motivação mais aguçada além de uma loucura justificada por um trauma. Não há nada além de um esconde-esconde cheio de artifícios comoventes.
Uma alegoria não funciona somente no âmbito da racionalidade, forçando o espectador a compreender o seu papel. E é isso que o filme Fuja faz: ele tenta nos convencer da sua própria relevância através de uma premissa explícita, que reforça incansavelmente uma mesma ideia simplória: uma mãe extremamente controladora não permite que sua filha tenha uma vida normal...
Filmes também possuem a capacidade de construir imagens no inconsciente de seu público e, assim, criar relações com o mundo real que subvertem as certezas que carregamos ao longo da vida. Escrever sobre filmes dos quais não gostamos não é simplesmente um exercício de intolerância, recalque ou qualquer outra ofensa que sirva para ilustrar a intolerância de quem não quer ouvir opiniões contrárias. Escrever sobre filmes dos quais não gostamos é um exercício de resistência e um convite àqueles que querem respirar um pouco, pois clamam por mais complexidade em meio a falsos argumentos e relativizações. Um filme como "Fuja" reforça para muitos a ideia de que somos incapazes de confiar em nossos questionamentos, ou incapazes de confiar naquilo que sentimos durante uma sessão de cinema e preencher com a nossa subjetividade uma obra de arte. Quando não entendemos algo da narrativa de um filme, preenchemos suas lacunas com perguntas e questionamentos que expandem a nossa percepção sobre a obra, sobre nós mesmos e sobre o mundo.
São essas lacunas que um filme pronto como “Fuja” evita em nome do sucesso. Mas são exatamente essas lacunas que nós ocupamos dentro dos filmes. E são as nossas próprias lacunas que os filmes ocupam dentro de nós.
Filmes que caibam dentro de mim
e que eu caiba dentro deles.
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