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Uma breve reflexão sobre o filme "Meu Pai".

Atualizado: 4 de mai. de 2023



A estrutura de uma obra cinematográfica é, resumidamente, o corpo abstrato que dita as regras condutoras da história que se quer contar. Como assim? São as formas que o diretor e o roteirista escolhem para distribuir os acontecimentos da sua trama: as ações, os eventos, as cenas. É a maneira como um filme se organiza narrativamente, sendo alguns de estrutura mais simples - três atos, começo, meio e fim - outros, mais complexa - desordenamento da ações, lógicas oníricas, repetições de ações, etc. O mais interessante sobre essa complexidade é entendermos a lógica interna que o filme estabelece conosco, os espectadores.

No caso do filme Meu Pai (The Father, 2020), quase todos os efeitos dramáticos são frutos de um jogo estrutural, como se fosse impossível contar aquela história de outra maneira, seguindo outra articulação de cenas que não a que nos foi apresentada. Mas como podemos definir a estrutura escolhida pelo diretor Florian Zeller?


Cena-do-filme-O-Pai-Anthony-conversa-com-sua-filha-Anne-sentado-no-sofa

O filme conta a história de Anthony, um senhor de idade (Anthony Hopkins) que começa a apresentar falhas de memória, esquecendo eventos mais recentes, e cujo único contato pessoal é com sua filha mais velha, Anne (Olivia Colman). Nos primeiros minutos vemos Anne tentando convencer Anthony a parar de problematizar a relação com sua cuidadora, sugerindo que ele havia criado situações desagradáveis com a moça para forçar sua demissão. O interesse de Anne é em que ele aceite esses cuidados externos para que ela possa se mudar para a França, onde conheceu uma nova pessoa.


Após essa introdução, a estrutura começa pouco a pouco a se formar: um homem estranho aparece dentro da casa de Anthony dizendo ser o marido de sua filha, que logo em seguida reaparece na história com outra fisionomia, e Anthony já não a reconhece mais. Um estranhamento é criado e o espectador mais atento já terá indícios do que está acontecendo, porém, a cena final é o único momento em que toda a confusão se justifica e a estrutura, então, se evidencia.



Sendo assim, parto agora do pressuposto que você, leitor, assistiu ao filme e já sabe o que o final nos reserva.


Quando é revelado que Anthony está em um asilo nos é permitido olhar para trás, para o filme como um todo, e percebermos a natureza dos acontecimentos: sofrendo de demência, Anthony revive situações do passado sem distinguir lembranças e fatos atuais, como se estivesse reencenando alguns acontecimentos e os misturando com elementos do presente. Anthony preenche os rostos que estão sendo esquecidos por personagens que agora fazem parte do seu presente no cotidiano do asilo, alimentando toda a narrativa que acompanhamos até a belíssima cena final.


Anthony-Hopkins-atuando-em-filme-de-2020-O-Pai

Sabemos que o filme se passa sob à ótica dos delírios de Anthony na maior parte do tempo, principalmente nos momentos de maiores confusões e descontinuidades, onde personagens desaparecem abruptamente, ou surgem metamorfoseados, ou ocorrem elipses temporais que se justificam pelos lapsos de sua memória. Porém, em alguns momentos revisitamos os mesmos acontecimentos sob o ponto de vista de Anne, acessando cruamente a sua realidade. Para esse propósito servem as duas cenas da moça solitária na cozinha, uma espécie de ponto de referência para nós espectadores nos situarmos em relação ao ponto de vista da cena e entendermos exatamente qual personagem a câmera está contemplando na narrativa. Por isso, em alguns momentos temos um vago sentimento de que Anthony está mais distante dos acontecimentos dos diálogos, ouvindo conversas confusas, sob o estado de grande fragilidade. É também a razão pela qual nos deparamos com situações muito semelhantes a outras já apresentadas, como se elas se repetissem.

Tendo tudo isso em mente, me questiono agora sobre uma possível falha lógica na criação dessa arquitetura e na forma como ela é apresentada. Pode parecer um detalhe insignificante, mas o aperfeiçoamento de uma obra narrativa passa também pelo respeito aos acordos estabelecidos com o espectador, e há algo nesta estrutura que me parece mais um artifício cinematográfico do que uma sofisticação dramatúrgica.


Nos instantes em que estamos acompanhando os eventos sob o ponto de vista de Anthony é preciso assumir que eles são releituras de eventos passados. Não podemos afirmar que estamos vendo exatamente o que aconteceu, afinal, os personagens do passado aparecem metamorfoseados com personagens do presente. Mas muitas das confusões mentais que Anthony parece sofrer estão diretamente relacionadas com fisionomias que ele nunca viu na sua vida. Entendo que a cena possa ser uma reencenação, mas que confusão foi essa então no passado que gerou aqueles problemas?


Cena-do-filme-O-Pai-Anthony-junto-a-seus-familiares

Me explico: Anthony causou problemas a seus familiares no passado. Em uma das cenas, porém, ele entra na sala e não os reconhece. Mas o não reconhecimento é na verdade uma confusão com um personagem que ele só passou a conhecer no presente, na sua estadia no asilo. Então, pergunto: o que de fato gerou o conflito daquela cena? O que motivou o estranhamento? O que Anthony viu exatamente? Sei que podemos relevar essa questão. Licença poética, diriam. Mas insisto no exercício reflexivo: se estamos vendo uma reencenação do ponto de vista de Anthony, então, Anthony passou a lembrar dos eventos passados e a ressignificá-los? Mas como isso seria possível se o problema que motiva a cena, o que dá razão a existência daquelas ações, é justamente o esquecimento? O filme não é sobre essa condição de Anthony?





Além disso, há cenas onde a cuidadora Laura carrega a exata aparência de sua filha mais nova, Lucy, morta em um acidente de carro. Todas essas cenas acontecem sob o ponto de vista do nosso protagonista. Logo, é justificável que ela tenha a fisionomia de alguém do passado. Acontece que há momentos em que Anne está presente, conversando a sós com Laura. Reside aí um outro problema: se a cena é do ponto de vista de Anthony, o que justifica nosso acesso à essa informação? A essa conversa entre Anne e Lucy? É possível sugerir que seja uma cena com mudanças de ponto vista dentro dela, mas, se fosse esse o motivo, a cuidadora passaria a ter sua fisionomia verdadeira nos diálogos privativos com a Anne, e não mais com a feição de Lucy. Laura tem sempre a fisionomia de Lucy e ela não poderia ter nas cenas regidas por Anne.


cena-do-filme-o-pai-de-2020-mulher-em-um-leito-de-hospital

Apesar de tudo, esse meu questionamento, que talvez possamos classificar como uma falha de direção e roteiro, não arruína de maneira nenhuma a experiência do filme. Como antes adiantado: licença poética. Além disso, você já sabe que Anthony Hopkins e Olivia Colman são atores gigantes e a potência emocional que o filme cria é maior do que qualquer capricho que possamos ter sobre sua estrutura. O que não exclui, também, a possibilidade de refletirmos sobre as escolhas dos realizadores. A lógica interna de uma narrativa é o que há de mais precioso para se pensar e se construir uma história. É sob seu ponto de vista que o autor consegue se direcionar, orquestrar os elementos da trama e dialogar com o espectador.


Meu Pai

(The Father)

Direção: Florian Zeller

Roteiro: Christopher Hampton

Baseado na peça homônima de Florian Zeller.


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O AUTOR:

Caetano Grippo é cineasta, artista plástico e professor. No Espaço Rasgo, além de coordenador é idealizador e professor dos cursos de narrativas, fotografia e direção.




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