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Uma análise sobre o filme "Garota Sombria Caminha pela Noite"

Atualizado: 15 de ago. de 2022



Garota sombria caminha pela noite” (A girl walks home alone at night), é um longa de 2014, dirigido por Ana Lily Amirpour, uma mulher nascida na Inglaterra, mas de origem iraniana. As marcas iranianas são claras no filme todo. Mesmo que ele tenha sido filmado nos Estados Unidos, o idioma falado é o persa, os atores são iranianos, e a cidade onde se passa o longa é, ficcionalmente, iraniana. Este contexto geopolítico é importante para compreender a dimensão do que pode significar uma vampira que mata homens que fazem mal às mulheres, tendo em vista que histórias de misoginia são comuns no cinema mundial e principalmente no cinema iraniano, gestado em uma sociedade patriarcal e opressora, onde as mulheres ainda têm sua liberdade de expressão muito limitada e por vezes nula. A vampira, que é chamada de “Garota” o tempo todo, não demonstra fome ou necessidade de sangue humano, ela seleciona suas vítimas e tem critérios: apenas mata homens machistas que fazem maldades contra as mulheres.



Em “Garota sombria caminha pela noite” (2014), a monstruosidade feminina está presente como uma forma de desafiar os estritos códigos de nacionalismo e religião, desconstruindo noções de pureza, patriotismo e masculinidade. A diretora Ana Lily Amirpour utiliza-se de elementos visuais clássicos dos filmes de vampiros para ressignificar estes, criando uma narrativa não usual. A primeira das tradições que pode-se citar como um exemplo de reinvenção é o mito da levitação e do vôo que acompanha a personagem vampira desde os primórdios das suas primeiras lendas, podendo elas estarem metamorfoseadas em morcegos ou não. No caso do filme, a levitação da vampira se dá através do uso do skate, que é utilizado como meio de locomoção e também é sinal de resistência feminina para muitas comunidades árabes pois em países como o Afeganistão – que compartilha língua, cultura e história similar ao Irã – as garotas são comumente proibidas de andar de bicicleta, e então aprendem a andar de skate para conquistar sua própria liberdade, cultura e estilo de vida que o skateboarding proporciona.


Uma outra subversão que ocorre no longa é a substituição da tradicional vestimenta dos vampiros, a capa, pelo uso do hijab, veste típica do Islã que frequentemente do ponto de vista ocidental está associada à repressão e retirada da liberdade feminina. A palavra "hijab" vem do árabe "hajaba" e significa ocultar do olhar, ou esconder. No contexto atual, hijab é a modéstia cobrindo a muçulmana. O hijab é muito mais do que uma vestimenta. É todo um comportamento, modos, fala e presença em público. A roupa é apenas uma parte do ser total.




Contudo, ao contrário do que se é esperado de uma mulher que usa este tipo de vestuário, a protagonista é totalmente livre, independente, forte e não obedece a ordens vindas de ninguém, seguindo Universidade Federal do Espírito Santo Programa Institucional de Iniciação Científica Relatório Final de Pesquisa 6 seus próprios princípios, além de ser uma espécie de justiceira social da sua comunidade, uma vez que seleciona as suas vítimas, matando apenas os homens que cometem algum tipo de violência contra as mulheres. Além disso, outras mulheres aparecem no filme e nenhuma delas usa burca ou hijab, o que indica que a Garota opta por usá-lo. Tendo em vista que o filme é dirigido por uma mulher iraniana, isso pode ser encarado como uma forma de quebra de preconceito com as vestimentas tradicionais árabes, exibindo ao público do filme - em grande parte ocidental, já que ele foi filmado nos Estados Unidos e feito por uma produtora americana - que existem mulheres que gostam e escolhem usar o hijab, ou burca, e que estas peças de roupa nem sempre são sinônimo de limitação feminina, podendo ser sim até um símbolo de resistência e liberdade, como no caso do filme.


Quando a protagonista não está coberta pelo hijab, as suas roupas também fogem ao padrão de figurino sexy e decotado que normalmente são empregados às personagens vampiras no cinema, que normalmente servem para potencializar a sua sexualidade e sedução de forma a concretizar as fantasias sexuais masculinas, fazendo com que as personagens tornem-se então meros objetos do olhar desse público. A personagem usa roupas típicas de uma garota que esteja na faixa de idade dos 20 anos: blusa listrada, calça preta e tênis. O único momento do filme em que ela aparece com os seios à mostra é quando ela está tomando banho na banheira, em contexto totalmente dessexualizado, exibindo apenas um fragmento do cotidiano da Garota que é colocado de uma forma natural.



Ainda que o seu figurino não a hiperssexualize, contrariando ao que se era esperado quando esta pesquisa foi iniciada, pode-se concluir que a personagem ainda assim é sedutora e pode ser interpretada como um tipo de femme fatale. Ela seduz o traficante que maltrata a personagem Atti para então matá-lo e beber seu sangue. Ela tira vantagem e usa os seus atributos físicos para conseguir o que quer: o sangue da vítima, assim como fazem as vampiras desde os primórdios do gênero literário e cinematográfico de Horror, desde a criação da personagem Carmilla. A diferença é que a Garota não faz isso somente para saciar a sua necessidade de sangue humano mas também para proteger Atti e consequentemente a sua comunidade, uma vez que o traficante pode ser uma ameaça para os habitantes da cidade. Para além disso, a protagonista não se resume a uma sedutora, este não é o seu foco, ela não é reduzida à sua sexualidade. Apesar de ser um ser sexual e com desejos, ela é muito mais do que isso, é uma protetora, uma garota que gosta de ouvir Lionel Richie, que anda de skate, sendo assim ela não é limitada pelas suas características sexuais, como na maioria dos casos de filmes de vampiras. Esta é só mais uma de muitas facetas de uma personagem complexa, com qualidades e defeitos.



O filme não nega as tradições e estereótipos pré-existentes das vampiras, mas sim se apropria destes para criar uma personagem que foge do arco narrativo de boa ou má, dando-a virtudes humanas e mais próximas à realidade e cuja existência não depende de um personagem masculino, fazendo assim com que mulheres e homens sejam capazes de se identificar com ela. Segundo a pesquisadora de Horror Carol Clover, a identificação entre gêneros diferentes não só é possível como é essencial, por exemplo, para os filmes slasher que utilizam heroínas mulheres ao invés de homens. O grande problema é que a maioria destes filmes cria um novo estereótipo de personagens masculinizadas ou “puras” - sem características sexuais – que também está distante da realidade e só se encaixa em um pensamento visto sob o olhar masculino, e Garota Sombria segue na direção contrária a isso.



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Rafaela Germano, professora do curso "Cinema de Horror e Monstruosidade Feminina", é Cineasta, artista visual e pesquisadora. Graduada em Cinema e Audiovisual pela UFES e mestranda de Comunicação pela UFPE. Realiza pesquisas sobre Cinema de Horror sob a perspectiva feminista, tendo criado o site “Mulheres no Horror”.


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