DORA: A Arte da Memória e da Resistência | Uma obra de Sara Antunes
- Helen Araujo
- 21 de fev.
- 3 min de leitura
Atualizado: 24 de fev.

A peça Dora emerge como uma obra contundente que, por meio de uma abordagem estética criativa, resgata a trajetória de Maria Auxiliadora Lara Barcelos – conhecida como Dora – uma militante que, aos 23 anos, se entregou à luta contra a ditadura militar brasileira. Escrita, dirigida e protagonizada por Sara Antunes, a montagem utiliza a troca de cartas entre Dora e sua mãe como fio condutor para revelar não apenas os horrores de um regime autoritário, mas também a força transformadora da memória e da resistência.

A narrativa vai além de um relato histórico. Ao revisitar as experiências de Dora – marcada pela prisão, tortura e exílio –, o espetáculo propõe um diálogo íntimo entre o universo pessoal e as consequências de um período sombrio da história do país. As cartas, que servem de suporte à trama, são instrumentos que humanizam o relato e aproximam o espectador da realidade vivida por uma jovem que, imersa em ideais revolucionários, teve sua vida profundamente afetada pela repressão estatal. Essa interseção entre o íntimo e o coletivo reflete a ideia de que as experiências individuais se entrelaçam com as lutas e os desafios sociais, reafirmando que a memória é um ato de resistência.
A montagem que Sara entrega ao público se destaca pela forma singular como transforma elementos cênicos em veículos de denúncia e reflexão. O cenário, que remete a uma sala de estudos e anatomia, é repleto de documentos, cartas e projeções que recriam fragmentos de um passado violento e, ao mesmo tempo, poético. A combinação desses elementos com uma trilha sonora cuidadosamente escolhida – com referências musicais dos anos 1970 – cria uma atmosfera que oscila entre a brutalidade dos fatos e a sensibilidade da arte. Essa dualidade estética é capaz de transportar o público para o interior da experiência de Dora, onde o sofrimento se mescla à esperança de um futuro possível.

Ao assumir as funções de escritora, diretora e protagonista, Sara Antunes imprime à peça uma marca profundamente pessoal. Sua performance vai além da simples encenação; ela se transforma em um instrumento de resgate e reinterpretação de uma história que, muitas vezes, permanece oculta. Ao intercalar a narrativa de Dora com toques autobiográficos – inclusive, refletindo sobre as relações com sua própria mãe – a artista cria um espaço de identificação e empatia. Essa postura não só intensifica o impacto emocional do espetáculo, mas também reforça o compromisso de dar visibilidade a narrativas que desafiam o esquecimento imposto pela história oficial.
Ao reconstruir a trajetória de uma guerrilheira por meio de recursos multimídia e de uma dramaturgia sensível, a peça reafirma a importância de se preservar a memória histórica como forma de resistência. O cenário, as imagens e os textos dialogam para mostrar que o passado, por mais doloroso que seja, carrega em si o potencial de transformar o presente. Assim, a montagem de Sara Antunes propõe não apenas uma narrativa de dor, mas também um chamado à reflexão sobre a necessidade de reconhecer e valorizar as lutas que moldaram a identidade de um país.

Em um contexto onde o silêncio e o esquecimento muitas vezes se sobrepõem à verdade dos fatos, Dora se impõe como um importante instrumento de resgate da memória coletiva. Por meio de uma proposta estética ousada e de uma performance comprometida, a peça de Sara Antunes nos desafia a encarar os horrores do passado para que possamos construir um futuro onde a liberdade e a dignidade humana sejam efetivamente resguardadas. Dora é uma celebração da arte como meio de resistência, uma convocação para que as histórias de luta e coragem nunca sejam esquecidas.

Helen Araújo é jornalista graduada pela Casper Líbero e em Artes Visuais pela Faap. Estudou direção em cinema no Instituto del Cine em Madrid.
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