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Você nem ao menos conhece ela


Tantas formas

Tantas formas de se expressar.

É aquilo que fica

ou o que nunca mais recordaremos.

Cansado de procurar suas inúmeras presenças

Encontrei

onde sempre disseram estar.




VOCÊ NEM AO MENOS CONHECE ELA

Um Conto de CAETANO GRIPPO



Esta história começou várias vezes e se encerrou tantas outras. Já não sei mais quando ela se reinicia e volta a terminar. Mas se passo a acreditar que esta será a última vez, algo dentro de mim parece partir. E não sei se estou pronto para me despedir assim.


Já passou da hora, eu sei.


Existe um filme com uma frase célebre: “eu não quero realismo, eu quero mágica.” A personagem diz isso aos prantos, com raiva. E toda vez que me lembro dessa cena, me pego pensando naqueles que criticam quem quer fazer de suas vidas algo mágico. Seja através de histórias que contam para si, para os amigos, ou através de sua fé. Justificativas não faltam para criticar quem assim escolhe ser: alienação, ignorância, desconhecimento da verdade… De certo modo, acho que muito desses argumentos tem a sua razão. Não sei. Escuto alguém me dizer que já passou da hora de esquecer isso.


Comecei a perceber que talvez o tempo tenha passado para mim sem que eu pudesse manter a chama acesa para criar as minhas próprias histórias. Como um amigo me disse uma vez: “talvez você tenha perdido algo pelo caminho”. É, eu sei. Sempre gostei dessas frases de efeito. Mas se tanta gente se apropria desses clichês, talvez alguma coisa verdadeira exista neles. Nem que seja uma verdade que a gente não consiga mostrar para mais ninguém.


Não gosto de criar personagens parecidos comigo, que sejam de fácil identificação, escancarando o que existe dentro de mim, minha opinião política ou minhas paixões. Gosto do que é inventado, da magia. Existe uma poesia no ato de criação ficcional que parece transformar todas aquelas mentiras nas mais duras verdades que, nem mesmo nós autores podemos identificar. É onde você entra na história e preenche os meus sentimentos, ou que possa nunca ter sido nomeado e passa a existir entre nós dois. Algo que criei e você passou a cuidar. É como dar contornos a essa verdade. É uma experiência que ciência nenhuma um dia irá explicar, sendo essa a grande angústia do ato de existir.


Criar e se extinguir. A certeza do fim.


Por isso, talvez eu ainda lute contra a ideia de deixar essas fantasias partirem. Amar é toda uma forma de criar. E deixar de acreditar nesse sentimento cortante que atravessa a gente sem nenhuma explicação se torna impossível. Por amar tanto as histórias e suas verdades, sempre me embriaguei pela possibilidade de construir a minha própria. Uma história de amor. E vivê-la de forma intensa, sem negar as durezas da realidade, sendo forte o bastante para superá-las. E esta história é exatamente sobre isso.


Ou nem tão exata assim.

Fui avisado pelos meus sonhos. Foram dois que surgiram em noites distintas. Quando acordei não recordava muita coisa além das sensações. Ao término do primeiro, tive clareza do meu sentimento por ela e passei a manhã elaborando o que eu poderia dizer. Eu precisava falar sobre esse sentimento. Talvez contar o sonho? Poder ser. Mas não o fiz. Com o tempo a gente aprende a conter esses ímpetos que tantas vezes já estragaram outras relações.


Alguns meses atrás, quando nos conhecemos, a certeza do que eu sentia era clara. Eu acho. Então tive uma breve impressão de que a coragem finalmente viria e eu seria capaz de fazer qualquer coisa. Mas durante nossas conversas, não me parecia que a gente poderia ter algo além daquilo que vínhamos nutrindo. Não sei se foi minha insegurança ou de fato percebi que ela não estava interessada. Fui me conformando com a ideia de que éramos bons amigos. E em pouco tempo as fantasias românticas passaram. Fiz certo em deixar partir. Conversamos muito nos últimos meses e aos poucos entendi que ela gostava muito de mim neste lugar. Um amigo.


Não consigo me lembrar de muita coisa do primeiro sonho. A imagem ainda nítida é de nós dois conversando, ela sorrindo e ambos felizes por estarmos juntos. Nenhum símbolo a ser decifrado, nenhum enigma que pareça obscuro. Será? Só restava o carinho por estar ao lado dela.


A imagem que tenho não vai além do seu sorriso reluzente, intenso. E essa é a sensação que trouxe de volta todos os sentimentos que estavam adormecido, que me colocou novamente atento ao que eu sentia por ela.


Durante o dia voltei a cogitar dizer qualquer coisa. Então fui sucinto. “Gostei muito de conhecer você, espero que saiba da importância da sua amizade para mim.” E nada a mais. A resposta dela foi até mais empolgante do que a minha afirmação, com mais clareza e carinho. Mas ainda assim, amigos.


Tenho algo profundo dentro de mim, que não sei descrever, um impulso, talvez, que me faz procurar relações insignificantes. Não queria escrever “insignificante”, mas escrevi. E não achei justo apagar. Não achei pensei que encarava essas relações desta forma, pois sempre busquei prazeres além dos sentidos carnais. Eu sinto profundo desejo quando me conecto através das palavras, quando crio um laço, antes de me entregar ao toque e ao gozo. E enquanto não via a possibilidade de concretizar meu amor, me entregava a esses encontros casuais para atender esse desconhecido dentro de mim. Perdi as contas dos tetos estranhos que observei quando acordei em casas distintas.


Mas aí, o segundo sonho aconteceu. E sem que eu pudesse me curar dos sentimentos por ela, o sonho a transmutou. Sua imagem agora era outra. O sentimento era o mesmo. O carinho. O desejo. A admiração. Mas ela, agora era outra. A sensação do amor que sentia por ela, agora estava sob a pele de uma outra pessoa.


Eu estava em uma rua deserta e sabia que era o caminho para conhece-la pessoalmente pela primeira vez. Não era um encontro romântico, nada específico. Eu só sabia que ela estaria lá. Até o momento desse sonho, eu só havia me comunicado por mensagens com ela e nem havia me dado conta do que estava sentindo. Quando ela se aproximou, ficamos ao lado um do outro e nos cumprimentamos. Do seu rosto emanava uma luz brilhante, e eu sei que isso parece o clichê de alguma história piegas de amor, mas dê um desconto para o meu imaginário onírico. A gente não controla as fantasias que vêm à tona enquanto sonhamos ou criamos paixões desmedidas.


E essa era a verdade. Eu me sentia apaixonado por ela. Tinha um sentimento de completude que me dominava e ali estávamos. Conversando, um bem próximo ao outro, como se estivéssemos cochichando segredos. E no sonho, penso comigo mesmo: isso pode dar muito certo. Como nenhuma relação antes.


Me sinto completo.


Assim que acordei, um aperto no peito. O fato de ser somente um sonho, daquilo não ser real, me fez permanecer deitado por algum tempo. Parecem sonhos simples, quase didáticos e objetivos. Eu poderia me sentir forte o suficiente para tomar uma atitude, ligar para ela e dizer exatamente tudo o que sinto. Meu Deus, quantos anos eu tenho? Pareço uma criança fantasiando um ideal de amor que vemos em histórias banais. E eu sei. Não precisa repetir. Já passou da hora de eu deixar essas fantasias partirem. Eu sei.


Passei dias tentando entender o que estava acontecendo. As relações do dia-dia não mudaram muito. Com a primeira, continuamos nossas conversas diárias, o compartilhamento das angústias cotidianas e nada mais. Com a segunda, existe todo um contexto que impede qualquer possibilidade de aproximação. Afinal, nosso contexto é profissional e qualquer avanço que eu venha a fazer precisa ser estrategicamente pensado. Nos conhecemos em um contexto que não permite que eu simplesmente diga o que sinto por ela. E algo me diz, que talvez, ela sinta o mesmo.


Quando nos falamos pela primeira vez na vida real, ela logo me chamou pelo meu apelido. Minha família sempre me chamou assim, pelo diminutivo do meu nome. Não sei se ela fez isso como alguma estratégia para criar algum tipo de afeição durante nossa relação profissional, mas quando me chamam assim, confesso que as fantasias afloraram. Memórias afetivas, talvez.


Tentei fazer aproximações mais pessoais e menos burocráticas, mas parece ali haver um jogo de atração e repulsa. Tem gente que gosta disso. Eu confesso que estou aprendendo a valorizar esse tipo de encenação. Talvez, pela ordem das coisas, seja essa a única forma que eu tenho de me relacionar com ela: eu avanço, ela se afasta. Ela reaproxima de forma simpática. Eu atendo a sua simpatia e mantenho. Tento fazer brincadeiras para manter essa aproximação e ela se afasta novamente. Ela é esperta, sagaz, sedutora.


Mas afinal, o quanto estou impregnado por fantasias, ideias abstratas de uma pessoas que nunca consegui capturar qualquer sinal concreto que me permitisse romper essa barreira? Obviamente que eu contei essa história para pessoas próximas. Qual o sentido de viver paixões repentinas se não for para escrever e contar para o mundo todo? Transformar nossa vida em um seriado barato é uma das formas que a gente encontra de encarar a vida.

Eu sei. Tudo soa um grande absurdo e escuto você daqui dizendo:

- Você nem ao menos conhece ela!


No impulso, tentei resolver com a primeira o que ficava no ar, e acabei dizendo tudo o que sentia por ela. Me restou o sentimento de ter estragado tudo. Às vezes é só uma impressão que aprendemos alguma coisa com o passar dos anos. Ontem ela me disse que não queria perder a amizade comigo, que tinha muito carinho por mim. E a única coisa que conseguia pensar é que talvez eu só tivesse dito a ela o que eu queria mesmo ter dito para a segunda.


Eu estou exausto.


Quando esse sentimento se transmuta para outra pessoa, não tem mais como a anterior sustentar as ilusões que ela nutria na nossa imaginação. É como se tudo que havíamos fantasiamos perdesse o sentido e os sentimentos que circundavam a sua imagem. Então me esforcei para tentar lembrar algo semelhante que possa ter acontecido no passado, mas que eu pudesse não ter notado.


Só me lembrava das vezes em que jogava futebol sozinho no quintal da minha casa e imaginava todo o meu progresso como jogador profissional. A cada gol, cada vez em que eu salvava meu time, imaginava ela olhando para mim, toda orgulhosa. Com o tempo, eu virei um guitarrista famoso, um professor, um cineasta e hoje um escritor. E em todas essas fases da vida ela estava lá. Olhando para mim, orgulhosa por todos meus feitos. E em todas essas fases ela teve um rosto diferente, um corpo diferente, mas sempre agindo da mesma forma.


Já passei pelo clichê psicanalítico freudiano. Sinto muito frustrar sua dedução óbvia. Hoje sei que ela é muito mais forte do que a imagem internalizada que tenho da minha própria mãe. É como se de certa forma ela fosse eu mesmo. Um eu distinto, detentora de afetos, carinho, orgulho e amor. Uma espécie de amor próprio.


E procurei nessa vida dar a ela tantas feições, tantas identidades, tantas formas de dizer “eu te amo”, que nunca me dei conta de que ela tinha o exato rosto que eu não podia enxergar. Uma paixão fulminante é como se olhar no espelho. Não sabemos nada sobre a outra pessoa, então preenchemos todas as lacunas com as nossas expectativas.


Com a gente mesmo.


Esta história começou várias vezes e se encerrou tantas outras. Já não sei mais quando ela se reinicia e volta a terminar. Mas se passo a acreditar que esta será a última vez, algo dentro de mim parece partir. E não sei se estou pronto para me despedir assim.


Já passou da hora, eu sei.


Mas realmente passou? O que me impede de olhar para ela e acreditar que dessa vez, talvez dessa vez, eu tenha encontrado alguém que eu, de fato, consiga enxergar quem ela realmente é?


Escuto às vozes me alertando da minha imaturidade. Talvez seja algum dos seus julgamentos enquanto lê essa história. Talvez eu precise aprender a deixar de lado esse hábito de esperar encontrar em alguém o que na verdade é uma parte de mim. Ela sempre esteve lá e lá vai permanecer até o fim.


Talvez ela se transmute novamente. Talvez eu nem mais a perceba tão separada do meu eu.


Talvez.

- Você nem ao menos conhece ela.


Eu sei. Mas convenhamos, tem que ter muita coragem, até mesmo maturidade, para continuar acreditando que a gente, uma hora, vai se encontrar.








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