
No Fla x Flu do cinema internacional, “Emilia Pérez” de Jacques Audiard já se tornou, para os brasileiros, o inimigo a ser derrotado. Principalmente porque está concorrendo a 13 prêmios no Oscar, incluindo Melhor Atriz, Filme Estrangeiro e Melhor Filme, assim como “Ainda Estou Aqui”. Além disso, há uma campanha geral contra o longa, que está envolvido em uma série de polêmicas. Pensei que, uma vez que não gostei do filme, escrever sobre ele seria chutar cachorro morto. Mas, talvez seja importante pontuar motivos, que estão para além dessas questões.
Tirando o elefante da sala: não tenho grandes coisas a dizer sobre as polêmicas. Não possuo conhecimento suficiente sobre o assunto para dizer se o filme é exatamente transfóbico. O caso do uso de I.A. para unir a voz da atriz Karla Sofía Gáscon com a da cantora Camille, que coescreveu a trilha sonora, pode ser entendido como um aprimoramento indevido da performance, ou como uma versão turbinada de dublagem. Já em relação às atrizes americanas e os sotaques espanhóis, entendo que a questão está menos no lado da identidade e mais numa crítica materialista.

Ou seja, limitar os pontos-de-vista e as representações artística – no caso, “só pode fazer o filme quem é, de fato, mexicano” – vão na contramão de uma das qualidades do cinema: a de permitir uma profusão de visões diferentes e de gerar empatia a corpos e lugares que jamais teríamos acesso de dentro de nossas individualidades. Pode-se argumentar ainda que é um marco positivo um filme desses ser totalmente falado em espanhol, com as atrizes tendo que aprender a língua. Dito isso, um diretor francês e uma plataforma de streaming norte-americana se debruçarem sobre temas nacionais sem nem, ao menos, ajudar a fomentar a indústria local, soa como imperialismo. De toda forma, nenhuma dessas questões diz nada sobre a qualidade do filme em si.
“Emilia Pérez” narra a história do chefe de um quartel de drogas mexicano, Manitas, que deseja fazer uma transição de gênero, contando com a ajuda de sua advogada para lidar com todos os problemas que essa mudança acarretará. É, agora sim, uma bagunça, que tenta ser um milhão de coisas ao mesmo tempo. Na mistura entre análise social, discussão sobre identidade, crítica ao narcotráfico, filme musical, melodrama latino pique Almodóvar e thriller sobre o tráfico como “Sicario”, Audiard mostra que não tem nada a dizer sobre nenhuma dessas coisas.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, julgando pelas escolhas estéticas que o diretor faz, esta não é uma sátira. Na verdade, é um filme que se leva extremamente a sério o tempo todo, que tenta construir uma tragédia sobre nossos tempos e ser politicamente engajado. Tipicamente criado para fazer sucesso em festival europeu. Mas, para isso, acha que precisa se distanciar de todos os apelos inerentes aos gêneros cinematográficos aos quais ele se filia com apreensão.
Um exemplo-chave é a cena em que a advogada Rita, interpretada por Zoe Saldaña, tenta convencer um médico a fazer a cirurgia de transição de sexo em Manitas. A discussão entre os dois se dá na forma de um dueto musical, com ambos cantando seus argumentos a favor e contra a cirurgia. Discursivamente, é uma cena extremamente panfletária. Não num sentido de defender uma causa, o que não teria nada de errado. Mas, no sentido de dizer com todas as letras o que o filme quer falar; de ser expositivo ao extremo sobre verdades óbvias. “Doutor, ser transfóbico é feio”, faltou a personagem dizer.
É claro que o musical pede por uma lógica narrativa menos naturalista, mas existe uma diferença entre isso e, por exemplo, “Wicked” (que eu, sinceramente, prefiro muito). Mesmo que sejam ditas obviedades progressistas, lá é através de alegorias e metáforas (das mais bobinhas, mas) sinceras. O filme trabalha, como um todo, a temática, sem precisar dizer, em nenhum momento, que “ser racista é ruim”. Aqui, toda a temática é exposta e reforçada no texto, enquanto as cenas em si pouco fazem para acrescentar qualquer coisa aos argumentos.

Além do caráter totalmente expositivo, o número musical com o médico é encenado da forma mais básica possível: intercalando campo e contracampo dentro de um consultório com todo o aspecto realista. Não que o filme não se deixe ir a uma ou outra extravagância, como o número em Bangkok ou o que a Selena Gomes entra e sai da realidade diegética, que vai do quarto a um cenário de videoclipe com dançarinos. Mas, tudo está em um limite, que parece ser o de fazer escolhas relativamente fora do padrão, mas que não sejam exatamente disruptivas para não afastar os votantes da Academia, nem extremamente populares, para que o filme não pareça “a frivolidade que é esse cinema de gênero”.
Tanto é que até as músicas se recusam a ser “chiclete”. Elas têm elementos de um pop meio experimental, com o uso de coros e de vocais que estão mais para a declamação do que para o canto exatamente. As danças são contidas, mais pensadas em movimentos com as mãos do que em grandes passos. Só há bailarinos pontualmente, como se apenas cenas de multidão pudessem justificar um balé mais grandioso. “Emilia Pérez” é um musical que odeia musicais.

Seguindo a mesma ideia estúpida que nomeou uma vertente do cinema de horror em voga ultimamente de “pós-horror”, daria para chamar o filme de “pós-musical”. Arnaud se apropria de um gênero muito popular para criar algo que soe como “arte elevada”, sem tesão nenhum por estar dirigindo um musical. O grande problema disso é que acaba higienizando uma forma de fazer cinematográfico. Como se precise pegar algo que é “ruim” e livrá-lo de todos os apelos possíveis para que ele se torne “bom”.
É uma atitude cínica, que tem tudo a ver como a nossa contemporaneidade que não se permite sonhar, não acredita mais no que os gêneros têm a dizer. Que, em vez de desconstruir o musical ou levá-lo para outros caminhos, cria um antimusical sem motivo algum de ser e sem nada para colocar no lugar. O que torna tudo pior é que Audiard parece acreditar que está se deixando levar por todos os estímulos disruptivos possíveis, porque faz um filme que vai para todos os lugares ao mesmo tempo. Mas, isso, num sentido narrativo.
O tempo todo o roteiro constrói novas pequenas situações conflituosas, como num novelão mexicano ou num filme de Almodóvar. Temos Emilia Pérez fingindo ser a tia dos próprios filhos; tendo que lidar com a convivência com a ex-esposa, com segredos revelados do relacionamento anterior, com o novo relacionamento dela; a dificuldade de Pérez em esconder o verdadeiro grau de parentesco que tem com os filhos; as dificuldades profissionais da advogada; entre outras. A maioria dessas situações, porém, não chegam a lugar algum e são abandonadas no meio do caminho.
Porque o cineasta não sabe muito bem o que quer dizer com tudo isso. É como se o simples fato de unir o musical com temática trans à realidade do tráfico de drogas no México fosse um statement poderosíssimo por si só. Ele vai tateando ideias, possíveis provocações, jogando todas na tela sem nunca se aprofundar em nenhuma delas. A sensação que fica é mesmo que ele tentou juntar vários assuntos importantes do mundo atual para que o filme parecesse importante, sem nunca parar para pensar em nenhum dos temas.
É até bastante infantilizado em como ele enxerga a possível redenção da protagonista e de ex-criminosos. Estes simplesmente se arrependem, claro que sem que o filme mostre nada desse arrependimento, só coloque numa música vários deles se dizendo arrependidos. Já Emília é, como diz outra canção, um mistério. Quando se é incapaz de ter empatia por alguém, de compreender uma pessoa, diz-se que ela é diferente, exótica. O outro continuará sendo o outro, distante. Olha-se como num safári os bichinhos muito fofinhos, que adoramos, mas que jamais entenderemos porque, veja bem, são animais distintos de nós. Eu aqui e eles lá do outro lado da tela.
Em relação às escolhas formais, também, “Emilia Pérez” não poderia estar mais no meio do caminho. O diretor filma tudo como qualquer outro “pseudo-autor” de festival de cinema filmaria. A única diferença é que coloca uns números musicais ruins no meio. Por exemplo, a cena em que a advogada vai revelando os podres de cada convidado do evento beneficente. Audiard resolve tudo em longos planos, a câmera que se desloca pelo espaço com o uso de steadicam, travellings e panorâmicas rápidas. Escolhas formais que se repetem aos montes em todo filme atual que quer fazer sucesso em Cannes. E, só para pontuar, obviamente esse assunto da dúvida moral de receber doações de criminosos para se contrapor ao crime nunca mais é abordada.
Um cineasta pode fazer as escolhas que quiser, mas tem que lidar com os resultados delas. Em “Emilia Pérez”, nenhuma escolha diz nada, nenhuma funciona. Todas elas são muito duvidosas, mas não no sentido moral do termo. Tudo está no limite do malfeito, do tosco. Não é um tosco proposital, como um “South Park” ou um “Hermes e Renato”, é um tosco “The Room”, do Tommy Wiseau. Tudo cheira à decadência desse cinema europeu; é tudo mequetrefe. As atrizes, principalmente Saldaña e Gáscon, esforçam-se para criar algum drama, alguma relação mais verdadeira entre as personagens, mas são obrigadas a lidar com um material muito vazio e questionável. O que são aquelas dancinhas que Saldaña tem que fazer? Elas, pelo menos, pegam uma obra que está se desmontando e tentam levá-la nas costas.

Pensando em escolhas estéticas que, mesmo dentro da indústria, podem ser desafiadoras, podemos citar gente como o Baz Luhrman, que se entrega para o hiper-estímulo, para o limite do mau-gosto da representação do glamour. Outro, já citado algumas vezes, é o próprio Almodóvar. O que faz o cinema do espanhol ser tão bom é que seus filmes são, de verdade, novelões. Não filmes elitistas, que olham tudo de cima pra baixo, como grandes obras de arte que fingem ser novelas, mas que “fazem a novela virar algo bom”.
Não é porque se faça uma obra que não seja exatamente o esperado que essa obra se torna boa. Não é porque Luiz Felipe Pondé e Olavo de Carvalho falam coisas que fogem do senso comum que o que eles dizem presta. “Emilia Pérez” é exatamente o filme que parece diferentão, que parece estar dizendo algo, perfeito para agradar o júri de Cannes. Que fará a elite da Academia votante no Oscar pensar, “ai, olha como eu sou desconstruído, popular; como me importo com mexicanos e pessoas trans”. É o equivalente cinematográfico do tênis da Balenciaga que parece estar sujo, rasgado, mas que custa milhares de dólares. Extremamente condescendente e elitista, mas acha que está se arrastando no chão junto com os populares e fodidos do mundo.
Eric Campi (@ericcampi_) é jornalista e pós-graduado em Audiovisual. Já trabalhou em diversos veículos de jornalismo cultural, como na Revista CULT e nos sites Wikimetal e MadSound.
Comments